Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Onde estão as bombas

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Onde estão as bombas A poeta Tatiana Pequeno na programação principal da Flip 2023 | Foto: Walter Craveiro/Flip

Me permitam iniciar mais esse solilóquio sobre livros com uma pequena digressão inicial em formato de linha do tempo. Vocês vão entender por que um dia a gente explode.

Em 2013, vimos as ruas serem tomadas por multidões empunhando cartazes. O bordão da época era “o gigante acordou”, como se o país de dimensões continentais que é o Brasil estivesse unido em torno de uma causa única e comum – universal. Para alguns era, inclusive, a primeira vez que participavam de uma manifestação de rua, ou por serem muito jovens ou só porque nunca tinham se sentido convocados como naquele momento. 

Importante dizer que a aura de movimento suprapartidário daquele levante tornava tudo mais palatável, sobretudo para os “isentões”, este tipo peculiar, que se proclama “neutro” ou “de centro”, algo que, se não for tratado com o devido remédio, acaba gerando os “nem de direita, nem de esquerda: meu partido é o Brasil”. Todo cuidado é pouco.

Em 2014, após uma disputa apertada no pleito que reelegeu Dilma Rousseff, o candidato derrotado contestou o resultado das urnas e pediu recontagem dos votos, colocando a jovem e frágil democracia brasileira em xeque.

Em 2016, assistimos na TV aberta, em pleno domingo, o cano de esgoto do Congresso Nacional estourar. A votação que autorizou a abertura do processo de impeachment contra Dilma teve uma enxurrada de chorume nos discursos excessivos sobre pátria, família, religião e até elogios a tortura sofrida por Dilma durante a ditadura. O único refresco foi a cusparada do então deputado Jean Wyllys no então deputado Jair Bolsonaro. Mas nem com cuspe aquela violência foi atenuada: estava em curso um golpe de Estado contra uma presidenta legitimamente eleita.

Em 2017, vimos um ex-presidente e candidato favorito das eleições do ano seguinte ser preso após um processo bastante escuso, conduzido por um juiz pra lá de suspeito, que veio a integrar, sem qualquer constrangimento, o governo do candidato beneficiado com aquela prisão. 

Em 2018, ainda antes da eleição de Bolsonaro, presenciamos atônitos o assassinato de Marielle Franco. Ecoam até hoje alguns pronunciamentos dela na tribuna, talvez o mais icônico seja o que diz: “Não serei interrompida! Não aturarei interrompimento de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita”. Impossível não se comover com a ironia. E algo entalado na garganta – além do choro – urgia em sair.

Em 2019 – com a destruição em curso e o horror à espreita – Tatiana Pequeno lança o volume de poemas Onde estão as bombas. Notem que não há ponto de interrogação no título, não é uma pergunta. O livro de Tatiana Pequeno é uma indicação, como quem diz “é aqui, neste livro, onde estão as bombas”.

E não se trata de uma reação direta aos fatos cotidianos que já esmagavam nosso juízo àquela altura. A grande ofensiva, para Tatiana Pequeno, era – depois disso tudo! – escrever poemas sendo uma mulher – uma mulher queer, gorda e de periferia.

carta para alguém depois dos protestos

é quente a noite no rio e a praça xv
arde sulfurada pelo estranho torpor
dos normais depois das cavalarias
de choque e da pimenta azeda que
trouxeram nos barcos dos pinheiros
sal vinagre especiarias azeviche
agora ferve a noite no rio e o centro
está vazio como se os habitantes
todos tivessem sido demitidos e uma
horda de restos denunciasse o adeus
de alguém mergulhando suicidado na
imensidão apodrecida da baía
é densa a noite no rio e os bairros
dos subúrbios dormem como aves
amortecidas não mais migrantes
não há pequenina luz nenhuma a
penas um homem em farrapos
que diz ter uma palavra importante
a ser compartilhada embora
ninguém aqui possa ouvi-lo.

(Tatiana Pequeno em Onde estão as bombas)

*

Caminhando livre no futuro foi o título de uma das mesas que eu mediei na programação paralela da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty. Os autores convidados eram Eliana Alves Cruz, Ana Paula Pacheco e Luiz Maurício Azevedo.

Comecei pedindo para que cada um se apresentasse a seu modo e Luiz Maurício foi logo dizendo que a informação mais importante que tínhamos que saber sobre ele, no contexto daquela mesa, era que em breve ele seria pai do Francisco, que está em gestação e deve nascer no início de 2024. O tom de esperança estava colocado, afinal estávamos ali para falar sobre a literatura como potência criadora de futuros.

Eliana Alves Cruz contou sobre a interface de seu fazer estético-literário com a história. Mas não a História tradicional e enviesada contada na escola. Seus romances narram “a história que a História não conta”, que é a do povo negro escravizado em terras brasileiras e a de seus descendentes. 

Eu arriscaria dizer que a obra de Eliana Alves Cruz é o melhor exemplo que temos do que Saidiya Hartman chama de “fabulação crítica” – um esforço de recontar histórias, buscar subjetividades além das lacunas, como uma tentativa de reparar a violência contida na produção de arquivos que se criaram a partir de vidas silenciadas e violentadas, como as de pessoas escravizadas.

A potência da literatura como dispositivo de criação de futuros é tamanha que me senti tocada por eles em minha subjetividade queer. Depois de ouvi-los, fiz menção ao bate-papo do dia anterior, quando conversei com o editor e curador Schneider Carpeggiani e a poeta Laura Torres sobre o recém lançado volume de poemas de Anne Sexton, Compaixão.

Sexton é frequentemente lembrada (e estigmatizada) por ter dado fim à própria vida e por isso a aproximam de Sylvia Plath e Ana Cristina César, por exemplo. Mas o fetiche mórbido biográfico precisa dar lugar ao feito estético: antes do suicídio, essas mulheres pegaram a saída da literatura. E com isso eternizaram suas existências, criaram uma possibilidade de futuro dentro do insustentável.

Lembrei de uma carta de Caio Fernando Abreu, em que ele diz a um amigo que não se conforma com a perda de Ana Cristina César, sobretudo pelo jeito como foi: “Com que direito, Deus, com que direito ela fez isso? Logo ela, que tinha uma arma para sobreviver – a literatura – coisa que pouca gente tem”, escreveu Caio.

A apresentação do livro de Sexton é assinada por sua filha, Linda. Depois de nos ofertar dados biográficos e informações íntimas que ajudam, sim, de certa forma, a ler a obra de sua mãe, ela insiste justamente nessa ideia e finaliza o texto dizendo: “Ela seguirá viva”.

O Risco

Quando uma filha tenta suicídio
e a chaminé cai feito um bêbado
e o cachorro arranca o próprio rabo
e a cozinha enfurece a chaleira areada
e o aspirador engole o próprio saco
e a privada se afunda em lágrimas
e a balança do banheiro sopesa o fantasma
da avó e as janelas,
esses nacos de céu, passam como barcos
e a grama escorre pela entrada da garagem
e a mãe se deita em seu leito conjugal
e como o próprio coração feito omelete.

(Anne Sexton em tradução de Bruna Beber no livro Compaixão)

*

Agora me permitam uma tietagem tão involuntária quanto platônica: da plateia, logo à minha frente, a poeta e editora Dionne Brand assistiu atentamente à leitura de um trecho do livro No vestígio, de Christina Sharpe, feita pela própria autora na mesa com Leda Maria Martins, um dos encontros mais aguardados da programação principal da Flip 2023.

Foto: Nanni Rios

*

“Muito bonito o que você disse sobre minha irmã, a Ana”, me disse um senhor que eu nunca tinha visto, logo após o bate-papo sobre literatura e futuro, já no pátio da Casa de Cultura de Paraty. Eu achei que tinha ouvido errado, em meio ao burburinho da fila de autógrafos.

Olhei bem nos olhos daquele desconhecido por um segundo e meu coração deu um pulo. Mas ainda assim fui cética com meus ouvidos e pedi pra ele repetir o que tinha dito. Então ele complementou, para não deixar dúvida: “Eu sou Flávio, irmão de Ana Cristina César, e achei muito bonito o que você disse sobre a minha irmã”.

Com os olhos arregalados e o coração em pequenas explosões, eu mostrei a ele que estava arrepiada. Ele sorriu gentilmente e disse que isso era bem comum, que as pessoas sentem muita falta de Ana e que veem nele um último fio de contato, como algo precioso mesmo.

Citei o poema de Angélica Freitas (outra inconformada com a morte de Ana, como Caio), para me anunciar como mais uma das “viúvas de ana c.” e ele me deu um abraço.

ANA C.

ana c. me salvou de ser técnica em eletrônica
os dezesseis
quando entrou de vermelho
em minha vida
e me deixou
aos seus pés

eu não tive escolha
foi um baita clarão
soco na goela seguido
de cisco no olho

quem é ela
o que é isto
quem sou eu

em 1989 a gente não tinha google
as bibliotecas eram enxames
pré-vestibulares

saber de ana c. e em seguida
de seu suicídio
fez de mim uma das mais jovens
viúvas de ana c.

eu me perguntava
mas por quê por quê por quê
você foi se matar
como se uma guria toda errada
míope descabelada
no fim do fundo do país
fosse fazer qualquer diferença
em sua vida ou anseio de continuidade

mas foi assim que aconteceu em 89
e eu larguei os estudos de eletrônica
porque até ana c. eu não sabia que se podia
escrever assim e eu queria escrever

também larguei por outros motivos
que não vêm ao caso aqui
e o que preciso dizer é

até hoje nós viúvas jovens e nem tanto de ana c.
sóbrias ou já meio loucas estamos procurando
uma noite de amor nas linhas de seus poemas

rezando para que saia enfim a tal biografia
que nos conte o que mais houve
para darmos visões novas ao nosso amor
e novos cenários para o nosso tesão

torcendo para saber que outras bocas ela beijava
porque afinal são sempre as nossas

e afinal são as nossas mãos que ela pega
até hoje quando escrevemos um verso, pelo amor –

(Angélica Freitas em Canções para atormentar)

*

A Flip de 2023 teve a curadoria de Fernanda Bastos e Milena Brito e reuniu em Paraty, durante os cinco dias de festa, dezenas (talvez centenas!) de escritoras e escritores dispostos a conversar sobre literatura e seus atravessamentos contemporâneos. 

Eu frequento a Flip desde 2007 (portanto, há 15 anos, e só pulei uma edição: justo a de 2016, que homenageou Ana Cristina César – que ironia!) e posso afirmar que a principal festa literária do país nunca teve tantas mulheres, tantas pessoas queer e tantas pessoas negras em sua programação oficial. Sem falar na quantidade de poetas – poesia numa hora dessas? Pois sim. E essa não é uma informação meramente estatística, mas sim uma percepção de mudança na qualidade do evento: os temas, a adesão e o perfil de público. 

Prova dessa revolução em curso – iniciada por Josélia Aguiar na edição de 2017 e aprofundada por Fernanda e Milena nas edições de 2022 e 2023 – é a reação do status quo: quem não gostou do que viu foram as grandes editoras, cuja hegemonia de conteúdo e a capacidade de pautar grandes eventos como a Flip foi desafiada por editoras muito menores, com catálogo mais diverso e estratégias mais contemporâneas de produção; e a grande imprensa, que criticou dura e vagamente a programação e o evento como um todo, com textos apegados a detalhes menores, como a lotação das mesas, e até a chuva, que é típica de Paraty nessa época do ano, e sem consistência nos argumentos, como se não tivessem feito o mínimo dever de casa, falando em “autores desconhecidos” (para quem?) como se não fosse deles também a função de apresentar “novos” autores ao público.

O equívoco de representatividade da Flip precisava ser corrigido, afinal ainda é preciso dizer o óbvio: a festa acontece num país cuja população é majoritariamente formada por mulheres e por pessoas pretas/pardas. As casas paralelas/parceiras (que começaram a integrar a programação, sendo reconhecidas pelo evento, somente na gestão de Josélia) diziam isso em alto e bom tom. Faltava alguém disposta a ouvir.

Desejo que a Flip saiba enxergar o valor e a importância da mudança empreendida nos últimos anos, ficando seus pés no hoje. A Fernanda e Milena: obrigada pelas bombas.

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