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Problema crônico em Porto Alegre, informalidade em alta será herança para próxima prefeitura

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Problema crônico em Porto Alegre, informalidade em alta será herança para próxima prefeitura Os informais representam cerca de 30% da população economicamente ativa de Porto Alegre. Créditos: Émerson Santos

A capital gaúcha tem um histórico de projetos paliativos contra a informalidade. Com a explosão do desemprego, resolver os problemas de ambulantes, catadores, motoristas e entregadores de aplicativos se tornou urgente

* Colaboração de Émerson Santos

Quando a pandemia chegou, a camelô Kátia da Silva recolheu sua banca onde vendia eletrônicos, cadarços, palmilhas e controles remotos na Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre. Trancou-se em casa com medo do contágio e viu os alimentos sumirem do armário da cozinha. 

Sem renda para sustentar os dois filhos, pediu ajuda nas redes sociais para conseguir comida. “Eu não queria dinheiro. Eu queria apenas que alguém pudesse me ajudar com mantimentos, com um pouquinho de material de limpeza, com o básico”, conta. Ela recebeu tanta ajuda que pode inclusive doar para vizinhos que estavam na mesma situação. “Até pouco tempo atrás, eu nem precisei comprar nada”.

As doações livraram a família da fome, mas logo Kátia percebeu que precisava voltar à calçada, o que fez um mês e meio depois de ter fechado a banca. Levou seu filho de 19 anos para trabalhar junto porque, após a dispensa do quartel, o rapaz não conseguiu emprego. Foram dezenas de currículos entregues e nenhuma entrevista nos últimos quatro meses. Além do filho, o cunhado e o irmão de Kátia, antes empregados no comércio, também passaram a trabalhar na banca. Os quatro se revezaram no cuidado do ponto, que virou o ganha-pão de três famílias. 

Ampliada com a crise provocada pelo coronavírus, a informalidade será uma das mais graves questões enfrentadas pela nova gestão municipal. Há um par de décadas, prefeitos e vereadores tentaram atacar a questão com medidas paliativas, pontuais e, muitas vezes, pouco eficazes. Agora enfrentarão um contingente maior de informais, com a alta no desemprego. Até setembro, a pandemia que paralisou diversos setores ceifou mais de 28 mil empregos só em Porto Alegre – entre eles o de Adriano, o cunhado de Kátia. De porteiro a gerente de compras, Adriano acumulou experiências que rechearam seu currículo. Meses antes da crise sanitária, ele conseguia obter uma renda de até R$ 2 mil no camelódromo e tinha planos de expandir o espaço da loja. “O movimento estava bom, a gente estava confiante que ia evoluir, melhorar a parte financeira. Mas fechou tudo”, diz Adriano. O camelódromo só voltou a operar no início de setembro, e parcialmente, e Adriano pode voltar ao antigo trabalho. No auge da pandemia, Adriano ganhava uma média de R$ 30 por dia na banca informal de Kátia. Quando as vendas são boas conseguia tirar até R$ 50. Sua esposa, Rosa da Silva Soares, também perdeu o emprego de cuidadora. A patroa pediu para que Rosa ficasse por três meses morando em sua casa, sem folgas, para não correr o risco de transmitir o vírus para a filha. “Eu tenho minha vida aqui fora, mas ela não queria contato de jeito nenhum. Daí eu tive que sair”.

A banca de Kátia virou o ganha-pão da família dela, do irmão e do cunhado. Créditos: Émerson Santos

Entre 2012 e 2018, o número de informais que trabalham por conta própria em Porto Alegre passou de 87 mil a 130 mil, de acordo com o IBGE. Nesse mesmo período, a proporção de pessoas inseridas em trabalhos informais na cidade – considerando também aqueles que trabalham para terceiros – oscilou entre 24% e 28% da população economicamente ativa, conforme dados compilados pela economista Lucia Garcia, técnica do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese). “Boa parte das pessoas com trabalho estão num status social bem ruim, porque não têm cobertura da seguridade social diante de uma desocupação, não têm cobertura para acidente, doença ou gravidez”, aponta Garcia. A tendência é que esse percentual aumente ainda mais, não só pela pandemia, mas por um processo de precarização vendido como “modernização trabalhista”.

Na corrida eleitoral pela prefeitura de Porto Alegre, seis candidatos abordaram o tema nos seus planos de governo: Júlio Flores (PSTU), Fernanda Melchionna (PSOL), José Fortunati (PTB), Manuela d’Ávila (PCdoB), Valter Nagelstein (PSD) e João Derly (Republicanos).

Lei da época da ditadura

Além da exclusão do mercado formal de trabalho, os informais sofrem com leis que os mantêm à margem e focam os sintomas do problema e não suas causas. A começar pelos camelôs. A primeira legislação municipal específica para o comércio ambulante data de 1968, uma das poucas realizações do então prefeito Célio Marques Fernandes, alçado ao cargo após o golpe militar de 1964. A lei regulamentada por Fernandes  exigia dos ambulantes a necessidade de alvará e contribuição sindical, sob pena de multa e apreensão da mercadoria. Também proibiu os comerciantes de “transitar pelos passeios conduzindo cestos ou outros volumes de grande porte” bem como “apregoar mercadorias em altas vozes ou molestar transeuntes com o oferecimento dos artigos postos à venda”. Além disso, barrava a venda de produtos no transporte coletivo. Passados 40 anos, a lei de 2008 manteve as restrições criadas na ditadura. 

Em 2009, o governo de José Fogaça inaugurou um projeto gestado por décadas e que foi vendido como a solução para os ambulantes: o Centro Popular de Compras, batizado de Pop Center, mais conhecido como camelódromo. O espaço localizado no Centro Histórico tinha como objetivo retirar as barracas de camelôs amontoadas nos arredores da Praça XV. O argumento oficial era que o novo espaço, com estrutura para 800 bancas, ajudaria a regularizar os informais. Mas havia também a vontade de “liberar as vitrines” dos lojistas das imediações, em constante conflito com os ambulantes. “Vamos devolver o Centro”, garantiu o então secretário de Indústria e Comércio Idanir Cecchin.

“Fizeram o que a Corte fazia: não deixar que tenha gente pedindo, não permitir a oferta de serviços nas ruas”, critica o economista Fabian Domingues, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “O camelódromo não dinamiza a economia, isso não reduz a atividade informal”, diz.

Não demorou muito para que os ambulantes circulassem novamente por outros pontos com alto fluxo de pedestres, como a Rua dos Andradas. O clima, que já era tenso com as autoridades, piorou com a chegada dos sacoleiros senegaleses há cerca de cinco anos. Os informais estrangeiros, muitas vezes sem domínio da língua ou das leis locais, foram repetidamente hostilizados por guardas municipais, lojistas e parte da população. No caso dos migrantes latino-americanos, muitos haitianos e venezuelanos foram frustrados com a escassa oferta de emprego formal, mesmo tendo diploma universitário.

Um processo semelhante ao dos ambulantes é o dos catadores de recicláveis, que também encontram seu ganha-pão nas ruas. Na década de 1990, durante os governos petistas de Olívio Dutra e Tarso Genro, foram instituídas algumas ações para tentar atender às demandas da categoria. Integrados ao código municipal de limpeza urbana, esses trabalhadores deixaram de recolher materiais diretamente nos lixões e passaram a fazer, em locais próximos, a triagem do lixo seco já separado pela população. Segundo um estudo da Feevale publicado em 2017, a coleta seletiva “propiciou a inclusão dos chamados ‘catadores dos lixões’, oferecendo melhores condições de trabalho e melhor remuneração”. Entre 1991 e 1996, foram criadas as associações de recicladores do Aterro da Zona Norte, da Vila Dique, do Campo da Tuca, da Wenceslau Fontoura, da Vila Cai-Cai e da Vila Bom Jesus – além da associação já existente na Ilha dos Marinheiros. Os galpões das unidades de triagem foram construídos pela prefeitura. 

Coletiva seletiva ofereceu melhores condições aos catadores, mas logo vieram novos problemas, como a queda no volume de resíduos.

Porém, junto à solução, apareceu um novo problema. A quantidade de material repassado aos catadores diminuiu consideravelmente e, portanto, caiu também a renda obtida com a venda de papéis, vidros, metais e plásticos. Entre as razões para isso, estavam os chamados “piratas do lixo” – gente que intercepta a matéria-prima antes de chegar às unidades de triagem, geralmente a serviço de atravessadores. Além disso, os grandes geradores de itens recicláveis, como escritórios, fábricas e shoppings, começaram a mandar seus descartes diretamente para empresas especializadas. Aos catadores, sobraram as latinhas que rendem pouco mais de um salário mínimo para cada 300 kg de alumínio. A solução, para muitos deles, foi ir às ruas com carrinhos e carroças na tentativa de antecipar a coleta de resíduos valiosos.

Em 2005, o então vereador e atual candidato à prefeitura Sebastião Melo (MDB) resolveu atacar o sintoma. Apresentou um projeto para acabar com os veículos de tração animal que circulavam pela cidade. Entre as justificativas, havia a preocupação com os maus tratos sofridos pelos cavalos e a condução de carroças por crianças e adolescentes. A proposta virou lei em 2008, com uma emenda que estendeu a proibição para os veículos de tração humana. A partir de então, os carroceiros e carrinheiros teriam um prazo de até oito anos para mudar de atividade. Em 2010, dias antes de deixar o cargo para concorrer ao governo estadual, o prefeito José Fogaça (MDB) regulamentou o projeto de retirada das carroças e a capacitação profissional voltada à área de resíduos recicláveis. Coube ao prefeito seguinte, José Fortunati (então PDT, hoje candidato ao Paço pelo PTB), criar o programa Todos Somos Porto Alegre, que previa bolsas remuneradas para incentivar os catadores a comparecerem aos cursos. Recebia o auxílio de R$ 8 por hora de aula quem tivesse frequência de pelo menos 75%. Além disso, havia indenização de R$ 200, R$ 700 e R$ 800 para quem entregasse seu carrinho, carroça ou cavalo, respectivamente.

Um relatório de outubro de 2016 mostra gastos no valor de R$ 13,9 milhões em três anos de programa. Desse montante, apenas R$ 1,4 milhão foi destinado às cerca de 870 bolsas concedidas e pouco mais de R$ 100 mil à contratação dos cursos de qualificação e empreendedorismo. Outros R$ 3 milhões foram repartidos entre a Fundação Solidariedade e o Centro Cultural James Kulisz (Cejak), ambas entidades de apoio assistencial. Já as construções e reformas nas unidades de triagem somaram R$ 3,5 milhões. Até 2017, ano em que o programa foi finalizado, o custo total do Todo Somos Porto Alegre foi de R$ 22 milhões: uma parcela de R$ 9 milhões financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), outra de R$ 9 milhões de contrapartida da prefeitura e os R$ 4 milhões restantes de apoiadores privados, como a Braskem, Ambev e o Instituto Renner. Uma dinheirama que não cumpriu sua missão. “Nenhuma dessas medidas pontuais voltadas aos camelôs, ambulantes e catadores vai resolver o problema da atividade informal”, critica Domingues. “O que precisa é dar emprego formal e salário digno. Tem que aproveitar os espaços ociosos no centro da cidade, criar cooperativas habitacionais”.

Três anos após o fim do projeto, os catadores reclamam que os empregos prometidos não vieram ou duraram pouco. Muitos que haviam entregado suas carroças e carrinhos voltaram à atividade nas ruas para poder colocar comida na mesa. Após dois adiamentos em um dos prazos previstos na lei de 2008, os mais de 6 mil catadores da cidade agora têm até 2022 para tirar seus carrinhos das ruas.

Nova precarização

Da mesma forma que o comércio clandestino, a moradia informal é uma pedra no sapato do poder público. A estimativa da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) é de mais de 2,6 mil pessoas em situação de rua na cidade, mas ONGs calculam que haja mais de 4 mil pessoas nessa condição.

“Os governos brasileiros sempre tentam ‘limpar o centro’. O emprego está em uma área muito concentrada. Então aqui, em Porto Alegre, as pessoas precisam circular pela região central para gerar renda. Sem dinheiro para pagar passagem ou aluguel, muitas moram na rua. Faz sentido que essas pessoas vivam em lugares com mais serviços de segurança, com possibilidade de fazer bico, de fazer coleta de resíduos. São famílias com pai e mãe que trabalham, a criança na escola e não têm dinheiro para pagar o aluguel”, explica Domingues, também coordenador de um grupo de pesquisa sobre economia urbana e direito à moradia na UFRGS. 

Na caça à informalidade, sobrou até para os flanelinhas. Em janeiro deste ano, a prefeitura sancionou a lei que proibiu a atividade de guardador de automóvel, sob pena de multa de R$ 300. O texto legal apenas fala de forma genérica em criar um “plano de ação para realizar a inserção” dessas pessoas – muitas delas sem teto –, mas não apresenta qualquer proposta.

Além dos que recebem trocados para vigiar carros, a economia informal agora tem os que vivem de caronas remuneradas. Em 2015, a chegada dos serviços como Uber e Cabify desatou a revolta dos taxistas, que consideram a concorrência ilegal e desleal por não pagar as mesmas taxas de funcionamento. A briga resultou em ataques físicos contra motoristas de aplicativo e na queda do faturamento dos táxis. 

Na tentativa de apaziguar os ânimos, a prefeitura aprovou, em 2018, a lei que regulamentaria o transporte por aplicativo que, a exemplo de outras regras que atendem trabalhadores informais, aumentava apenas o nível de exigências sem contrapartida. As novas regras não previram avanços trabalhistas para os condutores e, sim, o pagamento de uma taxa de gerenciamento, a necessidade de emplacamento no Estado e a autorização prévia da EPTC. Um ano depois, a justiça gaúcha barrou a lei por considerar algumas das exigências inconstitucionais. O transporte por apps em Porto Alegre segue sem regulamentação.

A situação dos motoristas particulares foi agravada pelo baixo movimento de usuários desde o começo da pandemia. “Com a crise, a pessoa fecha seu negócio e vira motorista de aplicativo. Mas não adianta, porque menos pessoas estão pagando para viajar de Uber, então é uma armadilha”, aponta a economista Lucia Garcia. Fenômeno oposto vivem os trabalhadores de entrega por app, como iFood, UberEats e Rappi: a demanda disparou com mais gente recorrendo ao serviço para evitar sair de casa. Apesar disso, a remuneração dos entregadores caiu e, para manter a renda, tiveram que aumentar sua carga horária, que já era brutal. Segundo uma pesquisa de 2019 da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas, 75% dos entregadores de bicicleta mantinham jornadas de até 12 horas diárias para ganhar pouco menos de um salário mínimo por mês. O descontentamento de motoboys e ciclistas levou ao “breque dos apps”, uma série de paralisações nacionais de milhares de entregadores realizadas em julho. Os informais pediram reajustes de preços, fim de bloqueio indevidos e equipamentos de proteção contra o coronavírus. Embora alguns serviços tenham fornecido máscaras e álcool em gel, a principal reivindicação – o reconhecimento do vínculo empregatício – ainda está longe de ser atendida pelos projetos da Câmara e do Paço municipal.

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