Microscópio

O que o caso de Hong Kong nos diz sobre reinfecção

Change Size Text
O que o caso de Hong Kong nos diz sobre reinfecção

Desde o início da pandemia, a compreensão da imunidade na Covid-19 ocupa um espaço central do esforço de cientistas envolvidos com a pandemia. Uma das grandes questões recai sobre o tempo de duração e o poder de proteção da imunidade gerada contra o SARS-CoV-2. Isso tem impacto direto nas projeções da pandemia, pois sua dinâmica é determinada, entre outras variáveis, pela quantidade de indivíduos ainda suscetíveis na população. Uma garantia da imunidade adquirida significaria uma mínima dose de segurança no horizonte.

É neste contexto que se insere a notícia da confirmação do primeiro caso de reinfecção de Covid-19. Trata-se de um homem de Hong Kong. Ele havia sido infectado pela primeira vez há cerca de cinco meses, quando desenvolveu sintomas e acabou superando a doença. Agora, após uma viagem à Espanha, ele passou por testes de triagem e, apesar de não ter sintomas, foi novamente confirmado com o SARS-CoV-2 no organismo.

Este é o primeiro caso confirmado de uma longa lista de suspeitas de reinfecções. Desde o início do desenrolar da pandemia, acumulam-se casos (ainda que minoritários perante à primazia de primoinfecções) de indivíduos “reinfectados” com o SARS-CoV-2. O problema destes relatos é a incerteza sobre o curso da primeira infecção e problemas advindos de métodos ainda pouco confiáveis de aferição da presença do vírus no organismo.

Dito de outro modo: é bem possível que muitos desses casos de “reinfecção” fossem simplemente uma nova manifestação da primeira infecção, não devidamente superada ou adequadamente diagnosticada, ou mesmo a mera persistência de traços proteicos remanescentes do vírus no organismo do indivíduo, sem que isso configurasse “nova doença”.

O caso de Hong Kong é diferente. O primeiro dado importante é a distância temporal: foram quase cinco meses entre a primeira infecção e a reinfecção. Neste período, o homem se mostrou plenamente curado, o que por si só já torna praticamente nula a hipótese de se tratar, ainda, da primeira infecção.

O segundo dado fundamental é o anúncio, feito por pesquisadores que trabalham no caso, que se trata uma cepa levemente modificada de SARS-CoV-2. Ou seja: o homem foi infectado, agora, por uma amostra de SARS-CoV-2 que passou por modificação genética. Trata-se de mudança muito pequena, que parece muito longe de configurar um “novo” coronavírus. Porém, essa alteração permite concluir que o coronavírus que infectou este homem na Espanha é diferente daquele que o infectara na primeira vez.

Peças no quebra-cabeças

Muito mais do que gerar pânico ou redefinir as políticas públicas de combate à pandemia (afinal, se trata de apenas um caso, que ainda não foi integralmente estudado e analisado), a notícia desta reinfecção pode ajudar a entender importantes questões ainda em aberto sobre a imunidade da Covid-19. De fato, esse caso de reinfecção vai ao encontro de algumas das hipóteses principais acerca de como nosso sistema imune reage a este coronavírus.

A primeira delas diz respeito à leitura de que o SARS-CoV-2 segue exposto às forças da seleção natural e, assim, mantém seu potencial de mutação. Disseminando-se habilmente pelos continentes e tendo infectado mais de 23 milhões de seres humanos em menos de um ano, era esperado que o vírus sofresse mutações. De fato, o sequenciamento genético de amostras de SARS-CoV-2 isoladas mundo afora é uma maneira de se mensurar o quanto ele está evoluindo e se alastrando.

A segunda questão recai sobre o tempo de duração da imunidade que nosso organismo consegue gerar contra o SARS-CoV-2. Com base nas experiências pregressas com seus parentes mais agressivos (o SARS, em 2002, e o MERS, em 2012), infectologistas supõem que a imunidade gerada contra o coronavírus atual dure pelo menos alguns meses, mas não muito mais que um ou dois anos. O caso das imunidades dos demais coronavírus capazes de infectar seres humanos é mais incerto, justamente por se tratar de quadros bastante amenos, sem grande preocupação ou necessidade de serem investigados.

Uma terceira incógnita diz respeito ao perfil da resposta imune “ideal” desenvolvida contra o SARS-CoV-2. No início da pandemia, partia-se do princípio de que a principal medida de imunidade seria a presença de anticorpos específicos contra este coronavírus. Embora os anticorpos continuem sendo um parâmetro extremamente importante e mensurável, estudos recentes vêm sugerindo a importância de linhagens específicas de linfócitos T (células protagonistas da resposta imune adaptativa). Assim, nossa imunidade perante o SARS-CoV-2 é um misto entre células e anticorpos, ainda que o papel exato de cada um destes elementos esteja em aberto.

Uma construção contínua

A notícia de uma reinfecção pode assustar. Porém, como disseram Akiko Iwasaki e Natalia Pasternak, o caso de Hong Kong parece se encaixar nas principais linhas de pesquisa acerca da imunidade na Covid-19. Embora seja atraente pensar que, uma vez superada a infecção, estamos imunizados “para sempre”, a realidade do sistema imunológico é bastante mais complexa. Dependendo do tipo de patógeno, a imunidade adquirida pode depender de vários fatores, como o grau da infecção gerada e a frequência de contato que o indivíduo “imunizado” mantém com o patógeno.

Num extremo, podemos considerar que, se o sistema imune nunca mais é estimulado pelo patógeno, este acaba “esquecido” – com isso, a imunidade pode se perder, e o patógeno voltar a ser infectivo. Porém, se nossas células de memória ainda presentes no corpo voltam a encontrar o patógeno, elas “se lembram” da sua existência, reforçam essa “memória” e atuam pronta e habilmente na sua eliminação.

Foi algo assim que ocorreu com o paciente de Hong Kong. Os relatos contam que, na primeira infecção (sintomática), foi feito um teste de sorologia, sem que fossem encontrados anticorpos. Agora, o homem (assintomático) foi novamente testado e apresentou os anticorpos. Em uma leitura cautelosa, podemos dizer que este indivíduo desenvolveu gradualmente sua imunidade: embora os anticorpos não existissem (ou pelo menos não em número suficientes para serem detectados) logo após a primeira infecção, seu sistema imune muito provavelmente gerou algum tipo de memória celular, que foi acionada de modo ágil e dinâmico na reinfecção – inclusive prevenindo que o homem desenvolvesse sintomas.

O caso da reinfecção ilustra o fato de que o sistema imune, muito mais do que constituir uma situação de extremos, opera em um contínuo. As imunidades são construídas gradualmente; do mesmo modo, elas podem, na ausência de estímulos, serem perdidas ao longo do tempo. Um desafio extra do tempo envolve as mutações: vírus de RNA, como é o caso do SARS-CoV-2, são propensos a sofrer alterações em seu código genético, de modo que, a longo prazo, podem surgir mutações que desafiem uma imunidade previamente criada.

Tudo isso repercute no cenário desenhado das vacinas tão esperadas para a Covid-19. Uma vacina eficaz deve ser capaz de estimular uma resposta imune forte o suficiente para gerar uma imunidade inicial – e, para ser útil, esta imunidade inicial precisa ser minimamente duradoura. Porém, serão necessários mais estudos, mais tempo e, sobretudo, mais experiência para sabermos de que maneira isso será possível.

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.