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Nathallia Protazio: Numa farmácia

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Nathallia Protazio: Numa farmácia

Entro correndo, não estou atrasada, ainda. Sempre assim, quem mora mais perto acaba chegando bem em cima da hora, o luxo da proximidade. Troco calça, coloco jaleco, uma última olhada no espelho do vestiário. Uuuuf. Respiro fundo e desço a escada distribuindo “Bom dias” e sorrisos. “Bom dia, farma”. Pronto, a Nathallia ficou lá dentro do armário de metal, agora só tem a farmacêutica do horário da tarde. A outra eu. Bato meu dedo com um minuto de atraso, ufa. Nada demais do ponto de vista legal. Por outro lado, são sessenta segundos inteiros que usei para a minha preparação psicológica. Não é nada fácil encarar o balcão de uma farmácia e a multidão que passa por ele diariamente.

Não sei quantos farmacêuticos você conhece, mas pode perguntar pra qualquer um por que aquela criatura resolveu um dia estudar farmácia. Aposto uma caixa de paracetamol que ninguém vai responder: “Pra trabalhar numa drogaria, é meu sonho”. Daí vem logo o pensamento: “Santa Madre de Deus, por que raios uma pessoa estuda pra uma profissão e não pensa em atuar no ramo que emprega mais de 75% dos profissionais?” Assim como muitos outros, este é um mistérios que as ciências farmacêuticas ainda não elucidaram. Só posso afirmar que eu também não pensava que a vida ia testar meus brios atrás de um balcão de farmácia. Isso mesmo, colega, faculdade nenhuma no país te prepara para o que vai acontecer. Mas mesmo assim acontece.

Chego no balcão, tem pelo menos quinze pessoas circulando na loja. Uma mulher grávida sentada no único banco à minha frente segura uma criança pela mão e com a outra equilibra no colo uma bolsa grande onde tenta a todo custo, atrapalhada pelo barrigão, achar alguma coisa que parece importante. Será uma receita de antibiótico pro filho que já nasceu ou talvez de ácido fólico pro que está fabricando? Talvez ela só tá procurando o dinheiro da lotação, saem muitas aqui na Esquina Democrática. Ao lado dela, tem uma senhora sentada no espaço que sobra do banco. Ela pode ter entre 75 e 97 anos, pele negra e cabelos brancos, me faz lembrar da minha tia avó. Diferente desta, ela parece enxergar bem, fica olhando de longe a senha que garantirá logo seu atendimento.

De pé tem algumas outras senhoras mais comuns, com aquele tipo de rosto de passividade de quem já aceitou a velhice sem muito esforço, só por força do hábito de resignação, coisa de mulher de outra época. Uma delas está ao lado das fraldas, fico torcendo pra ela se segurar nas pernas e não derrubar a coluna do tamanho G. Tem outra perto dela com ar de acompanhante, mas não consigo identificar quem seria mais velha entre as duas. Mais próximo do balcão e com uma ansiedade aparente tem um rapaz de uns, sei lá, vinte anos. Dá pra ver a pressa nos seus olhos escuros, apesar do boné, tenho certeza que pela sua expressão de agonia não é só vontade de ir embora, é também um anseio de não passar muito tempo ali do lado daquelas senhoras, como se a velhice delas pudesse de alguma forma passar pra ele pelo contato. Vejo-o se encolhendo e segurando as duas mãos à frente do corpo protegido por sua mochila. “Meu filho, se continuar assim por mais dois minutos vai precisar de um rivotril.”

Ajudando na barreira física entre o moço medroso e as senhoras tem duas meninas, menores de idade, certeza. Só espero que elas não estejam procurando teste de gravidez ou pílula do dia seguinte. Com o balcão cheio assim eu não teria tempo suficiente para dar um mínimo de orientação. Odeio fazer só o mínimo e detesto não poder fazer nem isso. Espero que elas estejam só acompanhando de longe o homem suado que está ao lado. Ah, não. Ambos têm uma senha na mão. Não estão juntos, agora é torcer pra terem vindo só pegar um ibuprofeno pra cólica.

O homem suado parece perdido. Olho nos seus olhos. Agora é certeza, ele está muito perdido. Desvio o olhar antes que ele tente aproveitar o contato visual pra furar a fila. Mas sinto uma certa culpa, ele está sofrendo, deve ter acabado de receber o diagnóstico de diabétes e veio pegar seus medicamentos pelo farmácia popular. Porém, não tem certeza se aqui atendemos o programa, o que são esses medicamentos, como usar insulina, o que é uma insulina, o que é diabetes, o que vai acontecer com ele agora, vai morrer?, não vai mais poder comer doce, nunca mais? Pelos seus olhos toda uma infância feliz e açucarada está minguando dentro de suas memórias. Coisa triste isso de mudança de hábito. O médico faz uns exames, diagnostica e dá as ordens: medicação, caminhada e dieta. Pronto. Lava as mãos e joga o pobre cidadão desamparado no mundo. Um diagnóstico de doença crônica faz a pessoa nascer de novo, mas agora é por sua própria conta e num corpo com defeito. Ninguém sente pena, afinal não é nenhum câncer. Pra que drama? Mas aquela pessoa acabou de deixar toda uma vida pra trás, sem que lhe perguntassem, e agora uma nova vai começar com regras de um jogo em que ela não pediu pra entrar. Isso deve ser no mínimo amedrontador. Poxa, tomara que dê tempo de eu explicar um pouco sobre o programa, as insulinas, as agulhas, a dieta, ai meu deus, vou precisar de um mínimo de tempo, de novo.

Para completar nossa população de clientes impacientes ainda tem um casal encolhido perto da porta. Espero que aquela timidez não esconda nenhuma depressão ou síndrome bipolar. Além de ser um desgaste pro casal, seria realmente um inconveniente ter que preencher uma receita inteira de medicamento controlado agora nesse vuco-vuco. Opa, quase não tinha visto, atrás da gôndola de desodorantes, ela, Ah! Mas eu não creio, de novo, ela já tá roubando de novo o desodorante aerossol. Afe, colocou dentro da calça, é… ali, eu é que não me atrevo a pedir pra devolver. Pode levar que eu tenho mais o que fazer. É mesmo, aperto a campainha e chamo a próxima senha do atendimento preferencial.


Nathallia Protazio é farmacêutica, nasceu em Pernambuco e agora vive em Porto Alegre, depois de ter morado em muitos lugares, incluindo São Paulo e Lausanne, Suíça. Este é o seu primeiro texto publicado, para honra da Parêntese.

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