Crônica | Memórias emocionadas

Peleias, livros, vinhos e risadas

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Peleias, livros, vinhos e risadas Foto: Antonio Villeroy

Entro no escritório de advocacia dos meus pais, que fica na peça frontal à esquerda da nossa casa em São Gabriel. Minha mãe está sentada em sua escrivaninha datilografando, com um cigarro aceso postado no cinzeiro ao lado da máquina de escrever. 

O aroma que predomina na sala é uma combinação do cheiro dos livros, da madeira das estantes, da máquina Remington e do fumo, que produz uma fina névoa no ambiente. 

É domingo. Meu pai não está. Meus irmãos, mais velhos do que eu, foram à matiné, em que geralmente passam dois filmes. Eu, ainda muito pequeno para ir ao cinema sem a companhia de adultos, passei aquela tarde entre meus brinquedos, o pátio da casa e o escritório, onde entrava apenas para acorrer à janela e ver se meus irmãos estariam a chegar.

Aguardava, ansiosamente, para ouvir os relatos, provavelmente de um faroeste e uma comédia.

Estamos nos anos 1960, um pouco depois do Golpe Militar que cerceou as liberdades no país. Minha mãe, na semana anterior, por conselho de um general que se dizia amigo da família, havia queimado alguns de seus livros, considerados indesejados pelo novo regime.

Essa é uma de minhas primeiras lembranças de infância, a sós com minha mãe. E sua disciplina, sua concentração e determinação, que a faziam trabalhar até mesmo nos finais de semana, foram fundamentais para forjar minha maneira de ser. 

Anos depois, já morando em Porto Alegre, ela foi trabalhar em parceria com o Dr. Eloar Guazelli, notável advogado, defendendo presos políticos. Em duas ocasiões, o escritório foi arrombado durante a noite, e as gavetas e estantes, reviradas. Por todo lado havia papéis, livros, carimbos, canetas e outros objetos.

Naquela altura, nos cadernos do Dops, a Polícia Política da Ditadura, constava a ficha de minha mãe: Heloiza Franco Villeroy, agitadora contumaz. 

Essa fibra para resistir às adversidades e manter-se fiel aos seus princípios é outra de suas qualidades que procuro trazer comigo, assim como o cuidado com o excesso de bajulações, que geralmente dissimulam tramas e traições.

Minha convicção, até hoje, é a de que aquele tal general, aparentemente afável, e cuja mulher fazia uma das melhores ambrosias que já provei, sorrateiramente municiava os serviços de inteligência dos militares com informações sobre aqueles que julgava subversivos ou que possuíam pontos de vistas políticos divergentes dos seus, muitas vezes expressos em conviviais rodas de mate em casas de amigos.

Meu pai, que havia sido o vereador mais votado da cidade pelo PTB de Jango e Brizola, também perdeu boa parte de sua clientela naquele período.

Em 1993, minha mãe foi pleitear sua aposentadoria, que incluía as contribuições previdenciárias como autônoma, acrescidos de dezessete anos na função de Procuradora da Fazenda Nacional e cerca de doze como professora de filosofia e português em colégios secundários nas cidades de São Gabriel, Porto Alegre e Novo Hamburgo.

Eis que diversos anos de sua carreira no magistério haviam desaparecido dos registros da Secretaria Estadual de Educação. Passei, pessoalmente, a realizar uma investigação, procurando os documentos em arquivos de Porto Alegre e Novo Hamburgo. Foram meses abrindo pastas empoeiradas, sem obter sucesso. 

Foi quando me ocorreu recorrer à Secretária de Educação, Neuza Canabarro, esposa do então governador Alceu Colares, que solicitou uma atenção especial a um funcionário, e, finalmente, encontramos os documentos, reunidos em duas ou três pastas amarradas com barbante, datadas de 1974, e com uma tarja a dizer que se tratava de documentos excluídos, expurgados, ou algo assim.

Finalmente, reunindo todos os documentos necessários, Heloiza aposentou-se, e comemoramos em um almoço dominical regado a garrafas de vinho branco português no Restaurante Galo, na Cidade Baixa, em Porto Alegre.

Mesmo aposentada, Helô, como era chamada pelos amigos, continuou trabalhando até 2002. Só então passou a desfrutar do merecido ócio, após vinte e cinco anos de estudos e quarenta e sete de labuta. Sentia-se um pouco entediada sem a pressão dos afazeres da profissão, que desempenhara com método e dedicação. Seus pareceres como procuradora são utilizados como modelos até os dias de hoje. É o que me relatam os novos procuradores que, eventualmente, venho a conhecer.

Sem a rotina profissional, minha mãe pode reservar mais tempo a um de seus hábitos que lhe dava mais prazer, a leitura. Sua biblioteca tinha mais de cinco mil volumes.

Em 2010, foi morar comigo no Rio de Janeiro, e se tornou parte da turma de amigos, formada principalmente por artistas. Aos domingos, ao final da manhã, a levava de cadeira de rodas pela orla, do Leblon a Ipanema, parando, eventualmente, para minutos de prosa com pessoas que íamos encontrando pelo caminho, até chegarmos ao restaurante Azul Marinho, no Arpoador, onde passávamos o dia, numa mesa que ia alternando convivas até o anoitecer. 

Tornou-se muito querida pelos amigos do Rio, e, mesmo quando eu estava viajando, recebia visitas diárias.

Depois de um AVC, em 2012, ficou debilitada. Já de volta a Porto Alegre, passou a morar com uma cuidadora. Eu também retornei para a capital gaúcha com minha mulher, grávida de nossa primeira filha. 

Até o final de seus dias, Helô manteve a inteligência acesa, o olhar esperto e os ouvidos atentos. Já não conseguia segurar um livro, então eu lia para ela e via seu sorriso interno a deliciar-se com os prazeres da literatura.

Em outubro de 2023 nos deixou. Seus livros, todos com sua assinatura e data de aquisição, foram doados, a maioria para a Casa de Apoio Madre Ana, boa parte para a Casa de Teatro, outra para uma sobrinha de São Gabriel, e os de direito para meu irmão, Carlos Eduardo, também advogado. 

Trouxe comigo para Portugal quatro ou cinco volumes, como um reforço de nossas lembranças, dos tempos que passamos juntos, das nossas conversas, adversidades, alegrias e risadas.


Antonio Villeroy é cantor e compositor, produtor musical, escritor, autor de trilhas e temas de filmes nacionais. 

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