Crônica

A casa da minha tia ficou famosa

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A casa da minha tia ficou famosa Foto: Breno Serafini

Minha tia Olga morava em uma casa na Rua Souza Doca, desde meados dos anos 1960, que hoje sei ter sido habitada antes por Dyonélio Machado. Tia Olga era também minha madrinha. Jovem viúva, ela era muito gente fina e gostava de contar histórias de suas travessuras juvenis. Tocava piano clássico e cantava canções populares na sala de sua casa. Transgressora, fumava muito, enquanto sua irmã era mais careta e detestava cigarro em casa. Obrigado, mãe. 

Era muito divertido passar as tardes na casa da tia Olga. Além do piano e das histórias, tinha um pátio e uma sala de jogos nos fundos, onde perambulava um porquinho da índia, tipo raro de bichinho de estimação. Assim como a dos meus pais, era uma casa muito boa, mas nunca pensei, até o ano passado, que se tornaria de interesse cultural para a cidade. 

Em geral, as festas de Natal e aniversário da vó Natalice eram na casa da tia Olga. O que hoje chamam de polarização era frequente nas festas. Tentávamos respeitar as matriarcas, mas na medida que o álcool fazia efeito era inevitável que alguma coisa ofendesse o outro lado e o bate-boca começasse entre os primos. O lado de cá, de esquerda, era liderado por meu irmão mais velho, professor universitário e militante nos anos 1960. Já o marido da minha prima era direitista do tipo lacerdista. (Para os mais jovens, lacerdismo era um tipo de lavajatismo anticomunista.) Mesmo um tanto riponga eu sempre ficava do lado do meu irmão, em especial depois que passei a trabalhar para o governo do Olívio Dutra. 

As brigas natalinas em nada afetaram a grande amizade entre as irmãs. A mãe era professora e gostava do Getúlio e do Brizola. Já minha tia gostava mesmo era de carnaval e da Mangueira, tanto que pintou a casa dela de cor-de-rosa com as aberturas verdes. Incrivelmente, a casa mantém esta cor até hoje, tempos depois da tia Olga cair doente e falecer. A casa rosa ficou vários anos caindo aos pedaços e desbotando. Sei lá a razão.  

A casa está famosa hoje em Porto Alegre e volta e meia sai no jornal*. Agora em 2024 integra um roteiro turístico-literário no bairro Petrópolis, por causa de seu construtor e primeiro morador, Dyonélio Machado. O interesse não é pelas características da casa, que além da cor nada me parece ter de interessante. Não se compara, por exemplo, aos casarões das famílias ricas que viraram patrimônio histórico nas cidades brasileiras, inclusive sedes de museus que atraem turistas a cultivar memórias dos tempos coloniais, imperiais ou mesmo republicanos, com acervos cuidados em geral com financiamento público. 

Foto: Breno Serafini

Não sei se o escritor famoso no Rio Grande do Sul tem acervo preservado. Mas fiquei realmente surpreso com o tal roteiro cultural de visitas a casas de escritores que moraram no bairro Petrópolis culminar com a visita às ruinas ainda não acessíveis da casa da rua Souza Doca. A rota passa por um vizinho mais famoso, Érico Veríssimo, que ficou conhecido no país como escritor regionalista e pai do Luis Fernando, nosso maior cronista. Já o Dyonélio ficou conhecido também por ter sido comunista e introdutor da psicanálise em Porto Alegre. Livros como Os Ratos ou O Louco do Cati são ainda bastante lidos.  

Se não sabia do valor cultural daquela casa, até agora quase ninguém sabia que era a casa da tia Olga. Talvez um dia volte lá como membro de um grupo de visitantes.


* A rota foi documentada em máteria do Paulo Cesar Teixeira em Zero Hora do dia 22 de março de 2024. Houve matérias sobre a casa também no Jornal do Comércio e no Matinal.


Álvaro Magalhães é sociólogo e músico. Dirigiu a Coordenação de Música da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre nos anos 1990.

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