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A onda do empreendedorismo

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A onda do empreendedorismo Morro da Cruz foi contemplado em pesquisa sobre empreendedorismo na periferia | Foto: Alex Rocha/PMPA

Esses dias fui atraída por uma manchete que dizia que as “mulheres já são 47% das MEIs operando em Porto Alegre”. A linha de apoio indicava que a notícia era sobre “empreendedorismo feminino”.

E quem são as empreendedoras? As atuações estão concentradas nos setores de alimentos e beleza e como diaristas, segundo a reportagem que falava do evento da Federasul em que a secretária de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Porto Alegre, Júlia Tavares, divulgou os dados. O encontro contou com a participação da proprietária de uma fazenda de turismo rural e a dona de uma rede de lojas de doces com fábrica própria.

Imagino que nenhuma delas seja MEI (Microempreendedor Individual), cujo faturamento anual não pode ultrapassar os R$ 81 mil.

Nesta semana, a prefeitura de Porto Alegre divulgou um estudo feito em parceria com o Sebrae sobre empreendedorismo nas periferias. O secretário municipal de Inovação, Luiz Carlos Pinto da Silva Filho, celebrou os dados inéditos, que devem “assegurar que a inovação e o empreendedorismo, ao invés de ficarem em bolhas, se estendam como um cobertor que atinja todo nosso território”, disse no site da prefeitura.

E quem são os empreendedores periféricos? Dos 1.033 entrevistados nos bairros Morro da Cruz, Restinga, Vila Planetário, Bom Jesus e Vila Cruzeiro no início deste ano, 66% sequer têm CNPJ, ou seja, atuam na informalidade. Dos formalizados, 44% são MEI. A maioria são homens (65%), negros (64%) e tem ensino fundamental (53%) – apenas 10% tem ensino superior.

Para a maior parte dos entrevistados (56%), a motivação para abrir o negócio foi uma questão de oportunidade. Porém – e isto não é um detalhe, pelo contrário –, entre os de menor renda e escolaridade, a necessidade foi a principal razão para empreender.

Nenhuma surpresa considerando que estamos falando de pessoas que vivem nas bordas da cidade, muitas vezes invisíveis aos olhos do poder público, enfrentando problemas como o que mostramos nesta reportagem sobre uma ponte precária no Morro da Cruz

Chamo a atenção para o discurso que vende o empreendedorismo como oportunidade de autorrealização. Uma narrativa que, não por coincidência, só cresce desde a famigerada reforma trabalhista, uma das recentes lendas urbanas que corre Brasil afora e segundo a qual o trabalhador teria mais poder para negociar com o empregador.

Sabem onde mais a gente encontra esse discurso? Entre os apoiadores dos ataques golpistas de 8 de janeiro. Grande parte dos perfis no Twitter que manifestaram apoio à tentativa de golpe diziam ser empresários ou empreendedores, embora fossem, na realidade, trabalhadores autônomos. A conclusão é de um levantamento com quase 90 mil contas na rede social. 

Uma das autoras do estudo, Rosana Pinheiro-Machado, diretora do Digital Economy and Extreme Politics Lab na University College Dublin, disse à Folha de S.Paulo “que se autodenominar empresário ou empreendedor é um fenômeno com fundo político e religioso, uma rejeição da identidade trabalhadora em favor de uma ideologia de livre mercado e ética da prosperidade pregada pelas igrejas neopentecostais”. 

Questão de gênero

O mesmo Sebrae-RS tem outra pesquisa, também divulgada neste ano, com foco em mulheres periféricas. Foram 50 entrevistadas entre 20 e 64 anos, das classes C, D e E de diferentes regiões do estado. “Elas empreendem por necessidade. Muitas até têm trabalho formal, mas complementam a renda da família com esta ocupação. Muitas são mães solo, sustentam a casa e cuidam dos filhos. E a maioria não se vê como empreendedora, se vê como alguém que precisa se virar para sustentar a casa. O empreendedor é algo superior pra elas”, disse Andréia Nascimento, especialista em Inteligência de Negócio do Sebrae-RS, ao Diário Gaúcho.

Empreender pode, sim, ser sinônimo de sucesso e inovação. Para algumas mulheres pode ser um caminho para se livrar de relacionamentos violentos, como mostrei aqui. Mas uma coisa é escolher esse caminho, outra é ser empurrado para ele. Boa parte dos brasileiros está nessa trilha: faz bico, se vira, sofre com precarização, vive sem estabilidade. Sobrevive.


Marcela Donini é editora-chefe da Matinal.
Contato: [email protected]

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