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Quando vão parar de nos matar?

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Quando vão parar de nos matar? Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Não é a primeira vez que abordo a violência contra a mulher neste espaço – e infelizmente sei que não será a última. As histórias de feminicídio se repetem com pouquíssimas variações: na maioria dos casos, o assassino era conhecido da vítima, havia agressões anteriores – até que a mulher tenta sair do relacionamento. Me pergunto: quando isso vai ter fim?

Em 2022, foram 106 mulheres mortas no Rio Grande do Sul por sua condição de gênero. O que isso significa? Que houve uma motivação sexista para isso, ou seja, estamos falando de prevenir um crime que é resultado de uma cultura machista, algo que não vamos resolver do dia pra noite. Complica ainda mais o fato de que, na maioria dos casos, como o agressor é ou foi companheiro da vítima, há um vínculo afetivo muito forte entre os dois, observa a advogada feminista Gabriela Souza.

Pouco mais de 10 dias atrás, chamou a atenção o assassinato de Kelly Lidiane Carvalho Moreira, morta pelo companheiro poucas horas depois de ele ter sido liberado de uma delegacia em Uruguaiana, onde Kelly havia registrado uma ocorrência por agressão. Muita gente se pergunta como a polícia liberou o agressor. Uma sindicância foi aberta para apurar a conduta da delegada de plantão. 

Organizações feministas que atuam em defesa das mulheres costumam apontar falhas na rede de acolhimento de vítimas de violência doméstica e no acompanhamento de mulheres que já registraram ocorrências, o que o Estado espera melhorar com a novidade das tornozeleiras eletrônicas que vão monitorar agressores no RS.

Riscos no curto prazo

Existe, à disposição da polícia, uma ferramenta que avalia os riscos de violência contra a mulher. De acordo com a titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Porto Alegre, Cristiane Ramos, o Formulário Nacional de Avaliação de Risco é aplicado “em 100% das ocorrências de solicitação de Medidas Protetivas de Urgência”. “A partir da análise das respostas, a autoridade policial decide os passos seguintes, que vão da instauração de inquéritos policiais para casos menos graves até representação por mandados de busca ou prisão preventiva para casos mais graves”, informa.

É fundamental que a mulher denuncie seu agressor. Mas tão importante quanto é ela ter segurança para fazê-lo. Rachel Louise Snyder, autora de No Visible Bruises: What We Don’t Know about Domestic Violence Can Kill Us (Sem hematomas visíveis: o que não sabemos sobre violência doméstica pode nos matar), diz que as mulheres correm maior risco de morrer por seus ex-parceiros nos três primeiros meses após a separação. A escritora mexicana Cristina Rivera Garza, no excelente O Invencível Verão de Liliana, apoia-se em Snyder para responder a uma pergunta recorrente de quem vê de fora um relacionamento abusivo: como uma mulher se mantém nessa relação?

“Se um urso o ataca, você o ataca por sua vez, sabendo que ele pode machucá-lo facilmente, ou você se finge de morto e cede? Snyder me fez entender algo fundamental com essa descrição: ‘As vítimas ficam porque sabem que qualquer movimento brusco vai provocar o urso. Elas ficam porque com o tempo conseguiram desenvolver algumas ferramentas capazes de acalmar, às vezes com sucesso, o parceiro furioso‘”.

Mudanças a longo prazo

Parte da saída para o fim da violência contra a mulher – como para tantos outros problemas crônicos no Brasil – passa pela educação. Gabriela Souza destaca que a Lei Maria da Penha tem caráter preventivo, e não apenas punitivo, e deve sim ser apresentada e discutida nas escolas. A advogada dá aula no primeiro ano do ensino médio em uma escola privada da Capital, onde aborda o conteúdo da lei. Ela lembra que, no ano passado, quando a Lei completou 16 anos, ela se deu conta de que seus alunos não conheciam um mundo sem essa legislação.

“As meninas nasceram já sob essa proteção, mas falta explicar a lei, ajudar a mulher a se reconhecer em um contexto de violência, explicar o que é uma Medida Protetiva de Urgência, por exemplo”, diz, esclarecendo que a ferramenta não é um “pedido para o agressor ir para a cadeia”, como algumas mulheres pensam – o que as faz desistir de solicitar esse direito em muitos casos. A MPU é uma ordem de afastamento do agressor, que só irá preso se desrespeitá-la. 

A fim de levar o tema da violência doméstica a crianças e adolescentes, nasceu no Distrito Federal o programa Maria da Penha vai à Escola. Neste link, está disponível um material de apoio que serve a educadores interessados em trabalhar o tema em sala de aula. Há desde reflexões – como identificar se a escola oferece atividades conforme o gênero das crianças, como futebol apenas para meninos – até propostas de atividades práticas para abordar da maneira mais adequada um assunto tão delicado.

“Nada na defesa das mulheres tem resposta única. É um trabalho multidisciplinar, global, que demanda investimento público e inclui votar em candidatas que defendam essas pautas”, opina Souza, que compara: “Se pensarmos na educação no trânsito, percebemos que o Brasil mudou muito nos últimos 30 anos. Ninguém usava cinto, hoje todo mundo usa”.

Pode ser uma utopia minha sonhar com o dia em que veremos uma mudança substancial em como a sociedade, em especial os homens, enxergam as mulheres e, enfim, parem de nos matar. Mas eu preciso acreditar que é possível.

Tolerância zero com o assédio

Os deputados estaduais do PSOL Luciana Genro e Matheus Gomes são autores de mais um projeto de lei que prevê protocolo semelhante ao documento catalão No Callem, acionado no caso de estupro de que é acusado o jogador brasileiro Daniel Alves. O Selo Tolerância Zero com Assédio determina medidas para estabelecimentos comerciais com o objetivo de proteger mulheres em situação de risco ou violência sexual. Nas últimas semanas, publicamos duas reportagens na esteira do episódio ocorrido na Espanha. A primeira mostra orientações já aplicadas em casas noturnas de Porto Alegre e a segunda apresenta PLs que propõem a criação de protocolos em Porto Alegre, no Estado e no Brasil para o atendimento de vítimas de violência sexual em grandes eventos.


Marcela Donini é editora-chefe no Matinal e feminista.
Contato: [email protected]

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