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“Não é não” – menos na igreja

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“Não é não” – menos na igreja Deputadas comemoram aprovação do protocolo Não é Não em Brasília | Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

“O amor nunca sufoca”. Em sua primeira mensagem de 2024, o papa Francisco repreendeu a violência contra a mulher e destacou a necessidade de relações baseadas no respeito. “Quem fere uma mulher, profana Deus”, disse o pontífice.

Mas na nossa Câmara Federal tem gente que não parece muito preocupada com a dignidade das mulheres.

No apagar das luzes de 2023, o presidente Lula sancionou o projeto de autoria da deputada Maria do Rosário (PT) que propõe mais segurança para as mulheres em shows e festas. O texto cria o protocolo Não é Não, que estabelece medidas para prevenção à violência de gênero e o acolhimento à vítima de assédio e abusos nesses ambientes.  

Ponto para as mulheres.

Acontece que no Brasil já estamos acostumadas a manter um pé atrás a cada conquista alcançada. Mal deu tempo para celebrar a aprovação e surgiram queixas – a meu ver, legítimas – sobre um parágrafo que não constava na proposta original: “O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa”. 

Quer dizer que na igreja “não” é “sim”? 

A quem interessa destacar que a espaços religiosos não se aplicam tais medidas, claramente necessárias para a segurança das mulheres considerando o sem-número de constrangimentos aos quais somos expostas nos mais variados ambientes? Universidades públicas, por exemplo, não são contempladas pela lei, que cita apenas locais onde são vendidas bebidas alcoólicas. Mas as universidades não receberam a ressalva explícita como os cultos. Por que será?

Só vejo uma resposta: jogo político.

Em reação às críticas, Rosário, autora da proposta original, explicou no seu perfil no X (antigo Twitter) que o foco do protocolo “são os lugares de diversão porque é onde se identifica alta vulnerabilidade das mulheres”. Também escreveu que “conversar com qualquer setor para aprovar uma Lei não diminui seu valor, aumenta! Mostra o percurso difícil que temos para garantir aprovações”.

O percurso, a saber: o dispositivo foi acolhido pela relatora do texto, Renata Abreu (Podemos-SP), mas foi retirado após passar pelo Senado, onde a relatoria ficou a cargo de Mara Gabrilli (PSD-SP). Com essa e outras mudanças, voltou à Câmara, onde o tal artigo foi recolocado no texto final e acabou aprovado. O Ministério de Direitos Humanos chegou a se manifestar apontando inconstitucionalidade no fato de a lei eximir cultos do novo protocolo, mas Lula o sancionou na íntegra.

Porto Alegre já contava com legislação semelhante, aprovada por unanimidade entre os vereadores em junho do ano passado e mais abrangente, pois contempla outros ambientes, como estádios de futebol e cinemas, por exemplo.

Não tenho dúvidas da importância da lei federal, mas também estou convicta de que, depois de quatro anos de retrocessos promovidos pelo governo Bolsonaro, que deixa como herança um Congresso ainda mais conservador, estamos nivelando por baixo nossa régua de direitos humanos. Mas seguimos adiante, uma vitória de cada vez.

*

Lélia González já dizia que a máxima de que “mulher vota em mulher” é “papo furado”. Nem sempre a representatividade de gênero na política se converte em melhoria na vida das mulheres. Mesma lógica vale para a questão de raça. Lélia defendia que pautas feministas e antirracistas podiam muito bem ser promovidas por homens e pessoas brancas. 

Um exemplo recente: o prefeito de Santa Maria, Jorge Pozzobom (PSDB), vetou o projeto de lei aprovado na Câmara de Vereadores que sugeria a escuta de batimentos cardíacos do feto a mulheres vítimas de abuso sexual que optassem pelo aborto – vale lembrar, um direito garantido no Brasil. Em suas manifestações sobre a decisão, Pozzobom escreveu que vetava o texto por dignidade e respeito às mulheres, além de comentar a inconstitucionalidade da proposta – criada, vejam só, por uma mulher, a vereadora Roberta Leitão (Progressistas). 

Agora eu pergunto: progressista para quem?

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