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O dia em que a água da Casa de Cultura ficou verde

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O dia em que a água da Casa de Cultura ficou verde Estudantes de Dança da UERGS promoveram uma performance no jardim da casa | Foto: Marcela Donini

Ação promovida por coletivo de mulheres artistas pintou a água das torneiras do prédio público em alusão à luta pelo aborto legal

A Casa de Cultura Mario Quintana foi invadida por uma maré verde na tarde de ontem. Das torneiras dos banheiros, sem aviso prévio, por volta das 15h, começou a verter uma água tingida no tom que representa a campanha pela legalização do aborto. 

Idealizada em 2021 por um coletivo de mulheres, a ação Verter foi concebida no embalo da vitória feminista que garantiu o direito de interrupção voluntária da gravidez na Argentina em dezembro de 2020. Andressa Cantergiani, Anna Ortega, Cristina T. Ribas, Érica Saraiva e Manoela Cavalinho participaram de um edital da CCMQ naquele ano. A proposta não foi aprovada na época, mas a ideia jamais foi abandonada pelas artistas.

Pelo contrário: de lá pra cá, a “maré verde” cresceu na América Latina. Outros países, como Colômbia e México, também permitiram às mulheres o direito de optar por um aborto seguro. A campanha ganhou esse apelido em alusão aos lenços verdes usados pelas argentinas – e que hoje já são mais comuns em outras regiões. Inclusive em Porto Alegre, na marcha feminista realizada no dia 14 de março, o acessório foi bastante usado pelas militantes.

Com a troca de direção da CCMQ em 2023, as artistas decidiram apresentar novamente o projeto – agora com a colaboração de Raquel Brust – e receberam a aprovação da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac). A diretora da casa Germana Konrath, que também é diretora de Arte e Economia Criativa, explica que, além de editais pontuais, o espaço também recebe propostas em fluxo contínuo ao longo do ano.

O projeto do coletivo passou pela avaliação interna, que analisou qualidade artística, viabilidade técnica, entre outros critérios, e foi considerado relevante pela perspectiva poética e pelo tema abordado, em especial pela possibilidade de ocorrer em março, o “mês da mulher”. Konrath frisa que não se trata de uma defesa da pauta da legalização do aborto por parte da Casa ou mesmo da Sedac, mas de proporcionar o debate sobre um tema atual. “A arte tem papel de desacomodar, e este é também um espaço de discussão, que recebe diferentes expressões artísticas”, afirmou à Matinal.

Vídeo de Manoela Cavalinho

A ação faz parte de um projeto que contará ainda com exposição que inaugura em 16 abril, também na CCMQ, com financiamento pela Lei Federal de Incentivo à Cultura e patrocínio direto do Banrisul e Ventos do Sul, apoio Banco Topázio, DLL, Panvel, Navegação Aliança, Tintas Renner, e realização da Sedac e do Ministério da Cultura.

A seguir, leia a entrevista com uma das idealizadoras do projeto Verter, a pesquisadora e artista Cristina Ribas.

Matinal – Gostaria de voltar a 2021, quando o projeto foi concebido, para entender melhor as motivações de vocês. 

Cristina Ribas – Nos juntamos em 2021, quando teve uma chamada para um edital na Casa de Cultura. Eu já tinha uma conexão com a Manoela e havia conhecido a Anna uns anos antes, quando ela realizou uma exposição (da série fotográfica “O Mar Verde foi Tecido”, com imagens registradas na Argentina, em 2019) sobre a pauta na Argentina, um período muito feliz da luta. Como estávamos no meio da pandemia, realizamos um evento online para discutir direitos sexuais e reprodutivos, no meio de 2021. Estávamos sob a energia da legalização na Argentina, aprovada naquela madrugada de dezembro de 2020. A ideia surgiu já pensando na Casa de Cultura, um prédio público. Estamos bem felizes com a realização.

A gente percebe que nas artes visuais se fala muito pouco sobre direitos reprodutivos, gestação interrompida, filhos perdidos, aborto. Fica sempre escondido, como se se referisse apenas à vida íntima das mulheres. Nosso desejo é tornar a pauta pública, na dimensão da luta, que é coletiva. Publicizar, falar abertamente sobre o direito de demandar a legalização, porque até isso é perseguido no Brasil. No ano passado, saiu uma nota de vários movimentos intitulada “Lutar não é crime”, em defesa de ativistas, que vêm sendo perseguidas. Consideramos importante falar sobre o tema a partir da produção cultural. 

Artistas no momento da diluição do corante na caixa d’água | Foto: Leo Caobelli

Matinal – Você acha o tema pouco abordado em outras linguagens artísticas também? 

Cristina Ribas – Sim, na performance e no teatro também.

Matinal – Me parece que no cinema, o assunto aparece mais. Ao menos recentemente: lembrei agora do documentário Incompatível com a Vida, da Eliza Capai (saiba mais sobre o filme aqui). 

Cristina Ribas – Isso. E teve também o Levante (filme de estreia da diretora e roteirista Lillah Halla). Na literatura também aparece mais. Tem o livro da Annie Ernaux, O Acontecimento, e uma outra autora que participou da FLIP do ano passado (Cristina se refere a Colombe Schneck, autora de Dezessete anos). E o cinema tem outra escala ao levar para as telas e plataformas, como no caso do filme da Eliza Capai.

Matinal – Em 2021, o contexto na América Latina e no Brasil eram diferentes de hoje. Na época, no Brasil, vivíamos um governo sob o qual era impensável sequer discutir a legalização do aborto. Hoje, com um partido progressista no Planalto, vocês se sentem mais otimistas em relação à pauta? 

Foto: Anna Ortega

Cristina Ribas – Os contextos são diferentes, mas nem tanto. Sou militante da luta integro a Frepla (Frente Pela Legalização do Aborto). A gente entende que o contexto é mais propício, mais manifestações estão surgindo, há organizações religiosas organizadas, como Católicas pelo Direito de Decidir e Frente Evangélica pela Legalização do Aborto. Agrupamentos profissionais também estão se organizando: aqui no Rio Grande do Sul, há um grupo de psicólogas pelo direito de decidir. Há um crescimento da pauta. Na marcha que realizamos em Porto Alegre no dia 14 de março, em alusão aos seis anos do assassinato da Marielle, havia muitos lenços verdes, o símbolo está mais na rua.

Foto: Leo Caobelli

Mas o contexto político brasileiro é bem truncado. O congresso hoje é mais conservador do que no governo Bolsonaro. No Brasil, ainda é preciso defender os direitos já garantidos por lei (casos de estupro, risco de vida à mulher e anencefalia fetal). Ainda é um tabu pautar o tema no âmbito da lei. Uma manchete recente da Folha de S.Paulo destacou a seguinte frase da ministra Cida (Cida Gonçalves, titular do Ministério das Mulheres): “Não quero reduzir mulher ao aborto”. Infelizmente, no âmbito nacional, o PT não parece estar querendo trazer o tema abertamente. 

Matinal – Você falou da questão do congresso conservador. Mas agora a questão está no Supremo Tribunal Federal. Vocês acreditam que possa avançar por essa via?

Cristina Ribas – O caminho no Congresso seria a legalização. E se entende que não vai acontecer. Via STF a proposta é descriminalizar, é tirar do código penal. Na França, ao colocarem o direito na Constituição, se tira a dubiedade do que é ou não crime. E isso é importante porque os conservadores gostam de confundir as pessoas, de arrastar a discussão para a questão da ilegalidade. A “cartilha da gestante” do governo Bolsonaro dizia que “todo aborto é crime exceto…” e citava os casos previstos em lei. Essa linguagem está errada.

Matinal – Sobre a intervenção na CCMQ: o fator surpresa foi uma escolha pensada considerando unicamente a experiência artística ou houve medo de ataques de grupos conservadores?

Cristina Ribas – As duas coisas. Queríamos que as pessoas se surpreendessem. Faz parte da ação o efeito segredo. Gerou um mistério, as pessoas perguntavam se seria uma performance, por exemplo. Mas, sim, também demos uma segurada na divulgação para evitar grupos conservadores que pudessem trazer mais polêmica. Porque infelizmente precisamos defender até o direito de falar sobre isso.

Matinal – Do ponto de vista técnico, como foi possível viabilizar a ação?

Cristina Ribas – O prédio tem três caixas d’água. Tingimos a água daquela que abastece os banheiros – das outras duas, uma vai para os restaurantes, e a outra é a reserva para incêndio, não podemos mexer. Usamos um corante alimentício, ou seja, a água continuou potável. Foi um processo bem interessante. Abrimos a caixa e despejamos o corante super concentrado. Trabalhamos com essa ideia de infiltração, essa coisa do contágio, de pensar para onde vão essas águas depois. Elas não ficam só no circuito interno da Casa de Cultura, se espalham pelo Guaíba depois. Podemos imaginar isso poeticamente, a diluição e o espalhamento. Fazer parte dessa maré de desejos de direitos, de gestar e parir, reproduzir ou não, e também pensar a sexualidade, a inclusão das pessoas não binárias e trans na pauta, e poder, sem dúvida, criticar os machismos.

A planta da casa com os canos pintados de verde ajuda nessa imagem, em pensar como essa água chega em todos os lugares. E o fato de ser uma intervenção em um prédio público é importante. Trata-se de uma ação que não é para ser clandestina. 

Foto: Leo Caobelli
Em pé, da esq. para dir., Cristina T. Ribas, Manoela Cavalinho, Andressa Cantergiani e Érica Saraiva. Abaixo: Anna Ortega e Raquel Brust | Foto: Leo Caobelli

Marcela Donini é editora-chefe da Matinal.
Contato: [email protected]

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