Folha de papel, 2022, instalação | Foto: Ricardo Perini

#180 | JULHO DE 2023

Ensaio Visual desta edição apresenta obras que falam sobre a formação individual e coletiva da história e da memória
Folha de papel, 2022, instalação | Foto: Ricardo Perini

Memória, história e certo misticismo se misturam na produção de Manoela Cavalinho, artista natural de Porto Alegre, que cresceu no interior do Rio Grande do Sul, e hoje vive no Rio de Janeiro. Com uma trajetória que perpassa o campo da psicologia e das artes cênicas, foi nas artes visuais que Manoela encontrou o lugar de onde queria falar. 

Apesar de diversas vezes apresentar obras que abordam temas como autoritarismo, repressão, política, ditadura militar e abuso de poder, sua poética não se resume a uma abordagem histórica e de denúncia. Há uma sobreposição de camadas que nem sempre são acessíveis, que nascem de lugares mais subjetivos e sensitivos e menos racionais como seria de se supor em um primeiro momento. Esse encontro amplia a potência da sua produção ao proporcionar diálogos que abordam não apenas os fatos históricos em si, mas sim a formação individual e coletiva da história e da memória.  

Na entrevista abaixo, concedida por email e complementada por um encontro online, Manoela conta um pouco mais sobre sua formação, seus interesses e caminhos poéticos. No final deste ano, a artista, que atualmente dedica-se ao doutorado em poéticas visuais, apresentará uma exposição na Casa de Cultura Mario Quintana, dentro do projeto Índice Remissivo, que propõe um diálogo entre artes visuais e literatura. 

Parêntese – Conta um pouco da tua trajetória. Tu é formada em psicologia e tem mestrado em estudos da subjetividade contemporânea. Depois fez graduação, mestrado e agora doutorado em artes. Como foi esse percurso até virar a Manoela Cavalinho, artista? 

Manoela – Nasci em Porto Alegre e fui para Frederico Westphalen que, nos anos 1990, era uma cidade semirrural. Partindo de Frederico era impensável prestar vestibular para Artes Visuais, portanto, cursei Psicologia. Mas a psicologia que encontrei na faculdade não correspondia aos meus devaneios. Li em Contardo Calligaris que os intelectuais brasileiros demandam respostas práticas e penso que não foi diferente para mim, que encontrei essa prática através da arte. Logo após a morte do meu pai, passei por um período complicado na psicologia e ingressei nas Artes Cênicas. Os jogos teatrais e a descoberta do corpo foram uma retomada com as artes, com a qual tive contato na infância. Todavia, ainda enveredei por um mestrado em Psicologia. Nessa época, durante uma aula de modelo vivo na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage entrei em processo criativo e decidi que não separaria minha vida da arte, fosse isso o que fosse. Nesse semestre, volto para a EAV como residente.

P – Atualmente tu trabalha apenas como artista visual? ou segue atuando na psicologia?

M – A última vez que atuei na psicologia foi há dez anos, quando trabalhei no CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial) de Viamão, mas poucos meses depois pedi para assinarem a carteira como oficineira de artes. Penso que é muito nobre uma profissão que se fundamenta na escuta, mas nunca consegui sair do nevoeiro das implicações éticas que a prática em psicologia supõe e estava exausta das minhas racionalizações. Por outro lado, um dos grandes prazeres do processo artístico é encontrar recorrências, repetições, interesses, o que aproxima a arte do processo de análise. Hoje, trabalho como artista e pesquisadora provavelmente porque, ainda criança, meu pai me ensinou a gostar dos jogos de azar: pôquer, roleta e corridas de cavalo.


P – Teus trabalhos abordam, por um lado, a memória – ou, talvez seja mais preciso dizer que apontam para a falta de memória – de um passado autoritário; por outro, em obras mais recentes, também falam do presente, das políticas de negacionismo e de um autoritarismo que segue vigente. De onde vem teu interesse pela história, pela memória e por olhar para fatos políticos que marcam a sociedade brasileira? 

M – Sobre a memória, sempre penso em Marguerite Duras, p.e., em O amante da China do Norte, quando ela retoma a família, um passado que desapareceu e, ao mesmo tempo, comenta sobre a colonização da Indochina. Vários livros de Marguerite trazem esse entrecruzamento, da história particular para a história mundial ou, no sentido contrário, uma história de amor que tem espaço no cenário apocalíptico pós-bomba atômica (Hiroshima mon amour). Minha família, em algum momento, esvaneceu. Era inevitável que eu me lembrasse de todos. Como não tive mais meus pais para me contarem as histórias fui reconstituindo causos, personagens, crendices, enfim, toda uma riqueza da oralidade do interior do RS e, de repente, encontrei a política. Num natal recente, em que havíamos combinado evitar assuntos polêmicos, perguntei: “Como foi a ditadura em Frederico Westphalen?”. Estranhei a reação grave dos mais velhos, que comentaram sobre as fraudes nas eleições municipais, o medo, as prisões e a tortura dos amigos do meu avô. Eles decidiram que não comentariam sobre esses acontecimentos com ninguém, exceto entre pais e filhos e de janelas fechadas. Não há registros de uma repressão intensa na cidade, ou seja, a repressão foi exemplar na medida em que sufocou o assunto e qualquer devaneio de resistência. Percebo que, ainda hoje, se evita falar sobre o assunto em Frederico. Nas últimas linhas da minha dissertação, Não vê no meio da sala as relíquias do Brasil, comento que a pesquisa sobre a história política foi uma busca por aquelas tardes no pátio, ao lado da jabuticabeira, ouvindo sobre personagens e fatos muito distantes da nossa realidade, mas que participavam das narrativas daquele mundo.


P – Como é teu processo criativo e quais são os teus espaços de trabalho?

M – Nos últimos anos trabalhei com instalações (Cama com dossel, Esqueleto no guarda-roupa, Folha de Papel) e meu delírio é trabalhar num galpão, mas me consolo com uma frase da artista Cinthia Marcelle, que o atelier é onde ela está com um computador. Sobre meu processo criativo, às vezes acontece uma coisa engraçada, quando os trabalhos surgem quase prontos. A poeta Sophia Breyner de Mello dizia que sua forma de escrever poemas era estar muito quieta e capturá-los no ar. Nem sempre é assim, mas gosto quando acontece. Dou um exemplo: há alguns anos, enquanto um curador comentava sobre um trabalho (Mãe, 2017), vislumbrei um guarda-roupas iluminado e, ato contínuo, comecei a chorar. Sabia que o guarda-roupas era a resolução de um enigma, mas naquele momento não identifiquei do que se tratava. Anos mais tarde, recebi um convite do Diego Groisman para uma exposição na Casa de Cultura Mario Quintana na mesma época em que uma amiga comprou um apartamento em que deixaram um guarda-roupas para trás. Nos fundos deste móvel escrevi um texto com cera de abelha e pó xadrez, ou seja, numa cor muito próxima à madeira. Contava sobre quando eu e minha mãe abandonamos nossa casa e, ao mesmo tempo, me aproximava do trabalho do meu pai, no Palácio da Polícia, sede do antigo DOPS-RS. Comentava, ainda, sobre o medo dos policiais, que diziam escutarem gritos vindos da sala de tortura, fechada há mais de uma década.

Foi muito estranho montar esse trabalho e, se não fosse o acaso de “ver” o guarda-roupa numa conversa, escutar uma entrevista do Paulo de Tarso Carneiro sobre o medo dos policiais e encontrar o móvel na época do convite, o trabalho não existiria. Gosto de uma expressão da artista Maria Helena Bernardes, “coincidências petrificantes”.

P – Alguns dos teus trabalhos também me parecem não necessariamente ter um fim, no sentido de que sempre podemos encontrar mais histórias, mais memórias e surgir novos desdobramentos para a obra. Como tu vê isso na tua produção?  

M – Em 2021, tive um projeto selecionado para o Salão Paranaense de Arte Contemporânea, promovido pelo MAC-PR. Minha proposta era viajar até a Mata Nacional do Iguaçu e o Lago Itaipu, supostos locais de desaparecimento de um grupo de militantes, deixar um fêmur de barro para cada e, ao lado, escrever seus nomes com letras de bronze. Por ser uma ação efêmera, os curadores não esperavam um retorno material; eu, por outro lado, não queria me ater ao registro, pensando que essa história deveria ser pública. Quando esgotei as negociações, enderecei a proposta para o Museu Paranaense: escreveria, com as mesmas letras de bronze que levamos à mata, os nomes dos desaparecidos do oeste do Paraná e, com a ajuda dos estudantes da Escola de Belas Artes (Embap), escreveríamos todos os outros nomes dos desaparecidos políticos brasileiros. A instalação também contava com um vídeo, do verso do retrato dos seis voando no céu de Capanema, última cidade pela qual o grupo passou antes da chacina. Quando desmontei esse trabalho, outra vez sobraram comigo os bronzes com os nomes dos desaparecidos. Fui até o mercado público, comprei um barquinho de Iemanjá e amarrei as letras de bronze nas cordas. Mas onde deixar o barquinho? Faço planos de deixá-lo na foz do rio da Prata, destino final das águas das Cataratas e de Itaipu e manancial onde emergiram alguns dos corpos dos desaparecidos argentinos lançados ao mar. Ou seja, vejo esses desdobramentos como uma maquinação do próprio trabalho, que não se encaminha enquanto não encontre uma forma justa, quase ritual.

P – Tu também tem obras que são intervenções urbanas, como Epigramas – colagens feitas em prédios e locais históricos que resgatam histórias da repressão e da resistência durante a Ditadura Militar. Por que atuar na e com a cidade, fazer dela meio/matéria para o teu trabalho? 

M – Os Epigramas são frases sobre acontecimentos da ditadura militar que decalco em frente aos locais onde os mesmos ocorreram. A ideia surgiu de um apagamento que teve espaço no Colégio Militar. Logo após a família de Lamarca ganhar uma indenização, o diretor do colégio destruiu todos os registros onde constasse o seu nome, inclusive escavou-o da placa de bronze da turma de formandos. Na fachada leste do colégio escrevi CARLOS LAMARCA ESTUDOU AQUI. Também contei causos prosaicos, como as bolinhas de gude que o movimento estudantil largava na Riachuelo para impedir o avanço da cavalaria. A cidade é porque sempre gostei de caminhar e porque se o sistema é pequeno, as ruas são grandes. Também porque os artistas caminhantes geralmente são homens. Posso pensar em Sebald, Francesco Careri, Werner Herzog, Paulo Nazareth. Já as mulheres caminhantes estão associadas a um destino trágico, p.e., Pippa Bacca, morta na Turquia durante uma caminhada do Brides on tour. Caminhar é resistir, caminhar e ser mulher, nem se fala.

P – Para ti, qual seria o trabalho da memória?

M – Num aspecto privado, penso que a memória se coloca diante da brevidade da vida e da passagem do tempo. A memória é uma reconstituição e me pergunto quais seriam seus limites, quando a evocação se torna quase uma fantasmagoria.

Quanto à memória coletiva, vivemos num país do esquecimento em que as violências se sobrepõem. A escravidão, os processos de colonização, as ditaduras, a violência do estado. É importante olharmos em conjunto para os interditos da memória, cobrar reparações, instaurar lugares de memória, julgar os crimes de estado. Só essa reavaliação coletiva pode devolver paz e justiça às vítimas principais, além de encaminhar os nossos fantasmas.

Quando eu mostrei os Epigramas na Fundação Ecarta, ainda na pandemia, convidei alguns ex-presos políticos para a exposição, sem esperança que eles fossem. Para minha surpresa, vários compareceram. Eu não sabia como a tarde transcorreria, quando começaram os testemunhos. Percebi a importância daquela fala pública, as dificuldades de escutar sobre a violência e, principalmente, percebi que testemunhar mobilizava aquelas pessoas. Nilce Azevedo Cardoso viajou de Belo Horizonte a Porto Alegre para estar presente. Acredito que pela falta de memória, verdade e justiça, os depoimentos se repetem indefinidamente. Inclusive, Nilce morreu logo depois, sem justiça.

P – O que tu estás pesquisando no doutorado e quais teus projetos futuros? 

M – Meu projeto é sobre minha mãe que, há 12 anos vive em clínicas geriátricas mas ainda é lúcida e consegue se comunicar. Nunca soube de um projeto de arte dentro de um asilo, uma geriatria e estou me ensaiando para fazê-lo. E, um projeto futuro, é uma exposição com a curadoria de Taís Cardoso e Daniel Galera, na Casa de Cultura Mario Quintana. Tenho pensado em Fahrenheit 451 porque, de acordo com esta obra, bastou cancelarem uma página de um livro para que, na sequência, todos acabassem proibidos.

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