Carta da Editora

Que cidade queremos?

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Que cidade queremos? Parklets como este na Andradas são exemplo de espaços públicos de interação social (Foto: Joel Vargas/PMPA)

“O objetivo fundamental da vida em cidades é o aumento da produtividade.” 

Eu achava que era qualidade de vida… 

Por isso me chamou tanto a atenção essa frase vinda de um dos representantes da Ernst & Young, empresa que presta consultoria à Prefeitura de Porto Alegre na revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA).

Sigo com mais um trecho do que foi apresentado no seminário promovido pelo Município no dia 11 de novembro.

“Tempo perdido em deslocamento, acidentes de trânsito, afastamento por doença causada pela falta de saneamento, falhas no sistema de comunicação, blackouts elétricos, segurança pública ineficaz e incapacidade de oferecer moradia, saúde e educação básica – especialmente às famílias de menor renda – são fatores que não vão ao encontro do objetivo fundamental da cidade”, lia-se em um dos slides projetados.

Fica parecendo que esses problemas – reais e graves em toda grande cidade brasileira – são um obstáculo porque resultam em queda de produtividade, e não em menor qualidade de vida para os moradores de uma cidade. Essa é a visão que deve embasar a revisão do PDDUA. No evento, Diogo Mac Cord deixou claro que o novo plano deve servir para “simplificar a vida do mercado imobiliário”.

É uma lógica que vai na contramão do que se vê nas cidades que figuram no topo das listas de melhores lugares para se viver. Copenhagen, por exemplo, privilegia espaços para atividades físicas ao ar livre, playgrounds, áreas públicas que promovam interação social e mobilidade intermodal, ou seja, ciclovias, transporte coletivo e menos carros.

Enquanto isso, a Prefeitura de Porto Alegre, mais uma vez na contramão, quer criar 577 vagas para automóveis na Redenção. O projeto de concessão do parque, aliás, define como facultativos os bicicletários e sequer menciona as palavras “fauna”, “flora”e “árvores”. Nem parece que estamos falando de uma área verde… O parque mais antigo e um dos mais simbólicos da cidade, diga-se.

O sucesso de Copenhagen

Na cerimônia do anúncio do Prêmio Somos Cidade, realizada nesta quarta-feira, Maurício Pereira, diretor da Kvartier Design, compartilhou a experiência de ter trabalhado na empresa de Jan Gehl, dinamarquês que criou o conceito de “cidades para pessoas” e é referência internacional em urbanismo. Ele destacou que o planejamento urbano influencia diretamente 8 dos 12 indicadores de qualidade de vida mapeados pela Organização Mundial da Saúde. Entre eles, recreação em tempo livre, segurança, contato social e liberdade – nenhum tem a ver com produtividade.

Nos anos 80, contou, Copenhagen estava longe de ser o exemplo de urbanismo que é hoje. Foi com um plano de 30 anos que começou a desenhar um futuro mais humano, a tal cidade para pessoas. “Percebeu-se que, quanto mais tiravam os carros (de circulação), mais as pessoas usavam os espaços públicos”, destacou. Segundo o urbanista, 70% dos espaços públicos de uma cidade são ruas e nós costumamos olhar para elas apenas como meios para ir de A a B, e não como espaços de estar. Pereira destacou ainda o aspecto econômico desse desenho urbanístico. Ele observou que a infraestrutura para longas distâncias de bicicleta favorece o comércio local. E foi além: “Vocês acham que plantar uma árvore pode dinamizar a economia? Sim”, respondeu ele mesmo, explicando que investir em qualidade de vida é atrair e reter talentos. 

Soluções e desafios

Participei da cerimônia do prêmio como finalista com a reportagem Como Porto Alegre pode se inspirar na Cidade do México para revisar seu plano cicloviário. Não levei, mas aqui no Matinal já havíamos comemorado um impacto importante da reportagem. A diretoria de mobilidade do Município pediu o contato de um dos entrevistados, Bernardo Baranda, diretor regional para a América Latina do Instituto de Políticas para Transporte e Desenvolvimento no México. Ele acabou convidado para participar do Seminário Mobilidade + Ativa, promovido pela Prefeitura no início do mês. Para a gente foi um golaço porque acreditamos no nosso potencial de contribuir para uma cidade melhor. O Matinal está aqui não só para apontar problemas, mas também apresentar alternativas e enriquecer o debate público. Aliás, vale a pena conhecer os projetos vencedores do prêmio: Caos Planejado, a seção Questões Urbanas, da revista Piauí, e o SPYIMBY.

Quando digo que Porto Alegre está na contramão, não acho que tudo que tem sido feito na cidade é equivocado. Há iniciativas pontuais que conversam com a ideia de cidade para pessoas, como a João Alfredo, transformada em Rua Completa, os parklets que cada vez mais tiram vagas dos carros para se tornarem espaços de convivência, e os grandes murais coloridos que embelezam a cidade. Mas quando olhamos para planos mais robustos, como a revisão do PDDUA e as propostas aprovadas para o Centro Histórico e para o 4º Distrito – que tem objetivos defensáveis como adensar a cidade e revitalizar áreas industriais –, é inevitável perguntar: quem vai usufruir dessas mudanças? Onde estão as propostas efetivas para fomentar a moradia social, por exemplo?

Trabalhar com foco em “simplificar a vida do mercado”, como se a iniciativa privada fosse resolver os problemas sociais de um lugar tão desigual como o nosso, definitivamente não é pensar a cidade para as pessoas.


Marcela Donini é editora-chefe do Matinal Jornalismo.
Contato: [email protected]

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