Carta da Editora

Reizinho mandão

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Reizinho mandão Foto: Acervo pessoal

Idiota. Quadrúpede. Canalhas. Cala a boca. Porcaria de imprensa. Vão pra puta que pariu.

Essas são algumas das gentilezas que colegas jornalistas ouviram do presidente Jair Bolsonaro em 2021. Ao longo do ano passado, foram registrados 453 ataques contra comunicadores e meios de comunicação segundo a primeira edição do relatório de monitoramento de ataques a jornalistas no Brasil, lançada ontem, 7 de abril, Dia do Jornalista, pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

Sozinho, Bolsonaro atacou a imprensa 89 vezes no último ano, ou seja, 19,64% do total de ataques. Mas o estrago não para por aí. Quando o chefe de uma nação desrespeita a imprensa, tem muito mais gente que se sente autorizado a fazer o mesmo. Acrescentando os ataques de seus ministros, assessores, filhos com mandatos eletivos e apoiadores, chegamos a 60% do total de ataques. Inimigo declarado da imprensa, o presidente já chegou ao ponto de sugerir tirar de circulação veículos como O Globo, Folha de S.Paulo e Estadão.

O relatório da Abraji aponta ainda que 283 casos, pouco mais de 60% dos registros, iniciaram ou repercutiram na internet. Foi o caso do repórter Pedro Nakamura, que produziu uma série de reportagens no Matinal entre agosto e setembro do ano passado denunciando irregularidades em um estudo com proxalutamida em pacientes com covid-19 no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre. O episódio, exposto pelo Matinal à época, está documentado no relatório da Abraji. Nakamura foi alvo de assédio virtual por parte do médico Ricardo Zimmermann antes mesmo de a primeira reportagem ser publicada, num claro ato de intimidação. O médico expôs mensagens do repórter nas redes, mobilizando seguidores em ataques ofensivos e ameaças.

Tudo isso em 2021. Mas às vezes parece que estamos de volta aos Anos de Chumbo. Aliás, foi em 1978 que Ruth Rocha lançou a primeira edição do livro O Reizinho Mandão. É a história de um “sujeitinho muito mal-educado”, que passa os dias criando leis absurdas e mandando os outros calarem a boca. Até que um dia as pessoas desaprendem a falar. O feitiço só é desfeito quando o reizinho encontra a única criança que não se calou e fala a ele o que todo mundo queria dizer mas tinha medo: “Cala a boca já morreu! Quem manda na minha boca sou eu!”.

Não se sabe bem que fim levou o tal sujeitinho. Uns dizem que ele fugiu; outros, que virou sapo. Há até quem acredite que ele virou rei em outro lugar, mas que seus dias no poder estão contados.

Falando em lei…

Já são quase 10 anos da Lei de Acesso à Informação em vigor – a década se completa no mês que vem. Uma legislação que, em alguns casos, ajuda bastante o trabalho de apuração jornalística, mas, na verdade, diz respeito a um direito de qualquer cidadão. Na reportagem que publicamos nesta semana sobre a transparência nas Câmaras Municipais das capitais brasileiras, fica claro que esse tempo todo não foi suficiente para impedir que falhas graves persistam.

O levantamento foi executado por jornalistas da turma de jornalismo de dados do IDP e coordenado pelo Matinal, um trabalho que levou meses entre as primeiras apurações, as duas rodadas de checagem e o contato com as 26 Câmaras das capitais. Faço questão de valorizar esse esforço coletivo na semana em que celebramos o Dia do Jornalista. Porque jornalismo não se faz sozinho.

Além de tema das nossas coberturas, a transparência é um valor caro para a redação. A matéria em questão tem todos os links das fontes consultadas e a explicação da metodologia utilizada. Incentivamos que outras pessoas façam esses mesmos caminhos e inclusive nos avisem se algo passou batido na nossa apuração – mesmo depois de duas rodadas de checagem, é possível que algo tenha escapado. Por isso estaremos atualizando as matérias nos próximos dias, inclusive com eventuais novas respostas das câmaras que não retornaram nossas tentativas de contato dentro do prazo solicitado.

E olha só que legal: essa reportagem partiu de uma iniciativa da turma depois de ver publicada uma matéria nossa sobre falhas na Câmara de Porto Alegre. É mais uma motivação para seguir adiante com nosso trabalho. Apesar dos ataques, da precarização das redações e da luta inglória contra a desinformação, celebramos nosso dia porque ainda acreditamos no potencial transformador do jornalismo


Marcela Donini é editora-chefe do Matinal Jornalismo.

Contato: [email protected]

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