Circulação de carrinhos de catadores de lixo pode estar com os dias contados; ONG diz que medida é racista
Ao mandato de Airto Ferronato (PSB), prefeitura diz que considera prorrogar a lei de 2008 por mais seis meses. ONG diz que medida é higienista e denuncia falta de alternativas aos 8 mil catadores da capital
O destino de milhares de pessoas que trabalham com o recolhimento de resíduos recicláveis em Porto Alegre passa por sucessivas indeterminações há quase 16 anos. Na capital, uma lei de 2008 pretendia extinguir gradativamente a atividade de catadores que utilizam carrinhos de tração animal ou humana. Se o problema das carroças puxadas por cavalos foi solucionado, o das pessoas que carregam seus próprios carrinhos segue ainda sem definição.
No último dia do ano vence o prazo que permite a circulação de veículos de tração humana na cidade, com a possibilidade de adiamento por mais seis meses. A três semanas da data, a prefeitura informa que ainda não tem uma decisão tomada sobre essa possível prorrogação.
Nos últimos quatro anos, a aplicação da lei nº 10.531/2008, de autoria do então vereador Sebastião Melo, foi adiada quatro vezes. A mais recente partiu de um projeto do vereador Airto Ferronato (PSB), aprovada pela Câmara Municipal há um ano, em 12 de dezembro de 2022, e válida até o final deste ano. Se fosse pelo Programa de Redução Gradativa do Número de Veículos de Tração Animal e de Veículos de Tração Humana, a circulação desses profissionais estaria proibida desde setembro de 2020. Estima-se que há entre 6 e 10 mil catadores de materiais recicláveis individuais em Porto Alegre.
“A reciclagem é a única fonte de renda para milhares de famílias porto-alegrenses. Compreendi que não podemos simplesmente extinguir uma profissão. Mesmo com a possível prorrogação por mais seis meses, não vejo como seria possível modificar a situação dos carrinheiros da cidade, de modo que é necessária a renovação da prorrogação desse prazo por mais tempo. Isso percebi em reuniões com esses profissionais”, disse Ferronato à Matinal.
O vereador questionou o Poder Executivo municipal sobre a promulgação de um decreto para esse adiamento. Ao vereador, a prefeitura informou que seu entendimento é de automaticidade da prorrogação. A Matinal buscou confirmar a informação com a Secretaria de Desenvolvimento Social, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
Para a ONG Pimp My Carroça, movimento que atua desde 2012 para aumentar a renda e dar visibilidade à pauta dos catadores, a lei porto-alegrense de 2008 é inconstitucional e marginaliza a profissão. A despeito do inegável preconceito com a atividade por todo o país, Porto Alegre é a única capital com uma legislação que dificulta a coleta por parte dos trabalhadores do setor.
“O projeto de eliminar carrinheiros das ruas de Porto Alegre é uma política higienista que institucionaliza o racismo ambiental, marginalizando ainda mais comunidades tradicionais que obtém sua renda da reciclagem e limpeza urbana”, afirma a organização, numa nota divulgada à imprensa por conta da possível perda de validade da lei que prorrogou as atividades dos carrinheiros.
Para a ONG, a lei representa o fracasso de uma política que não trouxe benefícios aos catadores de materiais recicláveis individuais, às cooperativas das unidades de triagem, ou mesmo para o panorama da reciclagem de Porto Alegre. Pelo contrário, a taxa de reciclagem do município só diminuiu, caindo de 7,1% em 2008, para 4,5% em 2021. Para o grupo, essa queda demonstra a incapacidade do poder público, tanto da prefeitura quanto da Câmara, para encontrar uma alternativa viável à categoria profissional.
A ONG propõe uma série de medidas para viabilizar a atividade na capital. Entre elas, realizar busca ativa por catadores de materiais recicláveis, oferecer cursos para catadores, respeitando a profissão da catação, contratar catadores para realizarem educação ambiental porta a porta, ampliar os horários da coleta seletiva, contratando unidades de triagem para também realizar a coleta, aumentar a quantidade de resíduos sólidos coletados e destiná-los para unidades de triagem, além de oferecer veículos de coleta alternativos aos atuais carrinhos de tração humana.
A avaliação é a mesma do Fórum de Catadores de Unidades de Triagem de Porto Alegre, para o qual o plano iniciado em 2008 falhou. A ideia da lei, de acordo com o coletivo, era que profissionais migrassem para um regime de associações e cooperativas, mas não houve grande adesão a esse objetivo. “Nem todo mundo quer trabalhar em sistema associativo, então se criou um dilema. A legislação acabou postergada em diversas ocasiões, pois a gente tem um problema social envolvido nessa pauta”, avalia a secretária do Fórum, Simone Pinheiro.
A ausência de uma melhor organização da atividade produz situações em que catadores individuais separam o que lhes é interessante e descartam equivocadamente o resto do material. Cabe ao Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) a tarefa de recolher esse lixo. A despeito disso, diz Simone, “as pessoas têm direito ao trabalho, quanto a isso não há dúvidas”, afirmou, acerca da permissão da circulação dos carrinheiros.
O sistema de coleta de resíduos recicláveis existe há 33 anos em Porto Alegre, sendo considerado um dos sistemas pioneiros no país. Recolhe-se, hoje em dia, cerca de 45,6 toneladas a cada dia na cidade, considerando apenas o número oficial captado pela Cooperativa de Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre (Cootravipa), que tem contrato com o município. O serviço existe desde julho de 1990, quando houve um projeto-piloto no bairro Bom Fim.
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