Reportagem

Com formação de um dia, maioria dos professores da rede municipal não usou kits de R$ 14,4 milhões

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Com formação de um dia, maioria dos professores da rede municipal não usou kits de R$ 14,4 milhões Prefeitura, em março, recorreu de decisão judicial e adiou a solução para o problema | Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA

Levantamento realizado no final do ano passado mostra que mais da metade dos professores não conseguiu utilizar os kits com os estudantes. Docentes relatam falta de orientação e excesso na compra

ATUALIZAÇÃO, 21 de junho, 13h50:
Este texto foi atualizado para incluir a resposta da Mind Lab, enviada após a publicação.

A Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) adquiriu, entre outubro e dezembro do ano passado, sem licitação, R$ 14,4 milhões em material didático da empresa Mind Lab. Seis meses após chegarem às escolas da rede municipal, a maioria dos estabelecimentos de ensino (53,3%) não havia usado os kits MenteInovadora da Mind Lab.

O dado está nos anexos de um documento que responde a um pedido de informação protocolado pela vereadora Mari Pimentel (Novo), em janeiro de 2023. A Smed não informa qual foi a amostragem utilizada na pesquisa. “Todos esses kits da Mind Lab estão em caixas. Visitei cerca de dez escolas, e, nessas, nenhum foi utilizado”, afirmou Mari, em entrevista ao Matinal. A secretaria sabe há seis meses que as escolas estavam sem usar o material que custou 14,4 milhões de reais ao todo e é alvo de três investigações movidas pelo Tribunal de Contas, Ministério Público de Contas e Ministério Público. Questionada sobre a pesquisa, a Smed não retornou. 

Entre os anexos da resposta ao pedido de informação da vereadora também constam depoimentos de docentes da rede municipal, oriundos de sete escolas porto-alegrenses, coletados depois de uma formação sobre o material da Mind Lab. Os comentários se dividem entre elogiosos e críticos. 

“Nossa realidade de estudantes de segundo ano é de crianças que ainda não escrevem com total autonomia, como sugere o livro/método”, diz uma professora de 2º ano na EMEB Emílio Meyer. Uma professora do 5º ano da mesma escola, por outro lado, diz que a atividade foi “bem recebida pelos alunos e de fácil aplicação”.

Uma docente da EMEF Heitor Villa Lobos, professora de 8º ano, reprovou a compra: “São jogos assim como outros que a escola já possui, como xadrez, damas, etc, que, como tais, estimulam habilidades de estratégias, paciência, planejamento. Acredito que há outras coisas essenciais que os alunos precisam antes disso, como não ter professores de certas disciplinas, merenda digna, transporte para passeios, etc”.

Para justificar a compra sem licitação, a prefeitura disse que a Metodologia Mente Inovadora (sic) da Mind Lab era exclusiva, não oferecida por nenhuma outra empresa. “Ao procurar por ‘metodologia menteinovadora comprar’ na ferramenta de pesquisa Google, logo pode-se notar que a empresa Mind Lab é quem possui exclusividade sobre o produto”, diz o documento, assinado pelo prefeito Sebastião Melo (MDB) no dia 16 de janeiro. 

O TCE alertou a prefeitura sobre a fragilidade da justificativa. Mari Pimentel também a considerou risível. “É como, por exemplo, pesquisar por ‘Palio’ no buscador. A única fornecedora será a Fiat. Não tem como justificar, parece bem direcionada, com uma resposta fraca”, rebate. A vereadora  protocolou, na Câmara Municipal, um pedido de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as compras da Smed – entre elas a dos kits educacionais da Mind Lab.

Consta também no pedido de abertura da CPI que a atual secretária Sônia Maria Oliveira da Rosa integrava a gestão do prefeito de Canoas, Jairo Jorge, afastado em março de 2022, por conta de investigação e processo judicial movido pelo Ministério Público, cujo objeto é o direcionamento de processos licitatórios com enriquecimento ilícito de integrantes do governo do município. Jorge retornou à chefia do Executivo no final de março. A investigação segue em andamento, e Sônia da Rosa é uma das investigadas.

Além da CPI proposta por Mari Pimentel, também há outro requerimento a respeito do mesmo tema, de autoria do vereador Idenir Cecchim (MDB), articulador governista na casa. Os pedidos serão submetidos à Procuradoria da Câmara.

Melo põe a culpa em professores 

Em entrevista ao programa Gaúcha Atualidade na quinta-feira, dia 8, o prefeito imputou às direções e a professores a responsabilidade sobre o desuso dos materiais. “Temos uma rede (de ensino) que pensa muito diferente do prefeito e da atual gestão, que acha que o aluno tem que continuar não aprendendo, que cada escola tem de ter o seu currículo”, disse.

Entre docentes, porém, a avaliação é a de que não houve orientação ou formação adequada por parte da secretaria para que se utilizasse os materiais, ou tampouco diálogo no processo da escolha específica pelo programa MenteInovadora da Mind Lab. 

A reportagem do Matinal ouviu três professoras que lecionam em escolas municipais. “A estrutura – os espaços físicos – estão bem complicados, com salas lotadas, com falta de professores. Isso tudo acarreta o desuso dos materiais, que foram simplesmente chegando nas escolas, desde o ano passado. As instruções chegaram neste ano e não são esclarecedoras”, diz a professora Rita Silva, integrante da direção do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa).

Ela também aponta a falta de prioridades. “Estamos com problema de vazamento de água, algo que já ocorreu no ano passado. A prefeitura levou mais de três meses para achar a solução”, afirma. Rita cita a insuficiência das equipes da manutenção ofertadas pelo município: “Ficamos na mão de terceirizadas que muitas vezes não prestam atendimento devido”.

A professora fala sobre um “sucateamento” do serviço público municipal. “Deveriam investigar a razão pela qual os materiais não foram utilizados, e não culpar professores. As tecnologias são muito bem-vindas, mas esses fatores nos colocam nessa situação”, argumenta.

Duas outras professoras ouvidas preferiram não se identificar. “O grande problema que vejo, além da óbvia suspeita pela quantidade enorme de material, é que ninguém perguntou o que achávamos, se a qualidade do que vinha era boa, se nos ajudaria, nada. Não temos nem espaço para tanta coisa. Isso não partiu de uma necessidade pedagógica, nem dos alunos, nem dos professores”, disse uma professora que foi supervisora numa escola em 2022.

Outra docente repete o relato sobre a falta de orientação por parte da Smed. “O material chegou sem qualquer comunicado prévio às escolas. Sem espaço para guardar. Era muita coisa, as escolas deixaram armazenados onde deu. E aguardaram orientações da Smed. Essas orientações só chegaram em dezembro, junto com aquela formação rápida de um ou dois dias, em turnos, que foi feita. A formação foi pouca”, disse. 

Um estudo feito em 2018 avaliou o impacto do MenteInovadora no desenvolvimento de alunos do 5º ano do Ensino Fundamental de 66 escolas de cinco redes municipais. Realizado pelo Insper, com apoio do BID Invest e o Instituto Ayrton Senna, a pesquisa disse que há um grau “extremamente elevado de heterogeneidade na magnitude do impacto entre redes”. 

O relatório diz haver casos com repercussões positivas e negativas e concluiu ser muito importante o treinamento dos professores para a adesão da metodologia – algo que, segundo os professores de Porto Alegre, ocorreu de forma precária. “(…) a evidência aqui encontrada também aponta uma extrema importância da qualidade da implementação para a eficácia de programas como o MenteInovadora”. 

A reportagem do Matinal entrou em contato com a Smed sobre as reclamações dos professores e a escolha da metodologia, mas não obteve retorno. Também contatou a Mind Lab para saber quantos treinamentos foram oferecidos e o número de docentes da rede municipal capacitados.

Embora tenha sido contatada antes do fechamento desta reportagem, a Mind Lab enviou, depois da publicação do texto, uma nota na qual informa sobre formações oferecidas a docentes da rede municipal, a partir de outubro de 2022. O Matinal fez novas indagações à empresa, porque não havia na primeira resposta menção ao número de professores capacitados. A Mind Lab informou que 323 professores estavam presentes no primeiro encontro no final do ano passado, mas, em abril de 2023, uma tutoria online contou com apenas 17 docentes.

“Reforçamos que as convocações para participação nos treinamentos são realizadas pelas secretarias e pelos órgãos competentes, responsáveis por gerir a educação em seus respectivos municípios, ou seja, a Secretaria de Educação é quem realiza as convocações. A Mind Lab atua em parceria com essas entidades, seguindo suas orientações e diretrizes” disse a empresa, por e-mail. Leia aqui a íntegra da nota enviada.

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