Reportagem

Dmae: falta de transparência favorece dívidas “impagáveis”

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Dmae: falta de transparência favorece dívidas “impagáveis” Mercado Público é o maior devedor do Dmae | Foto: Cesar Lopes/ PMPA

Acessível à população somente através de processo burocrático, lista de empresas devedoras da conta de água e saneamento na capital inclui quase 4 mil CNPJs com dívida acumulada que supera os R$ 50 milhões

As 3.863 empresas em débito com o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) em Porto Alegre acumulam um total de R$ 50.585.896,82 em dívidas. Os dados foram apurados pelo próprio Dmae no final de dezembro, atendendo a um pedido feito através da Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Fiquem Sabendo, organização especializada no acesso a informações públicas, e obtidos com exclusividade pela Matinal

São contas de todos os tamanhos, com atrasos que variam desde o período mínimo para um CNPJ ser considerado inadimplente – três faturas em atraso – até dezenas de meses em débito, em alguns casos remontando à década de 1990. É o caso, por exemplo, da antiga Cia. Cervejaria Brahma, em uma conta acumulada na antiga sede onde atualmente funciona o Shopping Total e atualmente na ordem de quase R$ 1,5 milhão – a quinta maior entre as empresas da cidade. A cervejaria deixou de operar no local em 1998, quando transferiu as operações para Viamão.

Mas traçar a história das maiores dívidas com a conta de água na capital é esbarrar em becos sem saída, jogos de empurra e, frequentemente, poucos esclarecimentos sobre a situação por parte do próprio Dmae, a quem caberia cobrar os valores em dia e suspender os serviços quando o pagamento não ocorre. “Nosso pedido vai muito nesse sentido: Porto Alegre, ao contrário de outros lugares, não publica por iniciativa própria a lista dos seus devedores, como, por exemplo, o governo federal faz”, explica o advogado Bruno Morassutti, cofundador e diretor de advocacy da Fiquem Sabendo. “Existem vários estudos que apontam que a transparência dos devedores facilita a cobrança dos créditos, mas aqui ainda não temos essa lista atualizada”, lamenta.

Hoje, a única maneira para um cidadão comum acessar a lista é percorrendo os caminhos burocráticos de um pedido de LAI, cuja resposta não é imediata e nem sempre apresenta resultados claros. Sem cobrança efetiva, algumas dívidas viram verdadeiras bolas de neve, tornando-se “impagáveis” por longos anos até que haja uma resolução da disputa em torno dos valores.

Mercado Público, condomínio e antiga cervejaria no top 5 dos devedores

Em média, as milhares de empresas devedoras do Dmae têm cerca de R$ 13 mil em débitos a quitar. Mas, para quem lidera a lista da inadimplência, esse valor chega a ser mais de 200 vezes maior: o primeiro lugar é do Mercado Público Central, com R$ 3,072 milhões acumulados em dívidas. O caso de um dos principais cartões-postais da cidade é exemplar dos labirintos que uma conta de água pode percorrer na capital, especialmente quando a responsabilidade sobre as faturas de um imóvel muda de mãos.

A reportagem procurou a Associação do Comércio do Mercado Público Central (Ascomepc) a respeito dos valores e da situação da dívida. Segundo a entidade, a inadimplência é referente a um vazamento em área pública, cujo conserto fica sob responsabilidade do município. O problema teria sido comunicado à prefeitura à época, durante a gestão de Nelson Marchezan Jr. (2017-2020). De acordo com a Ascomepc, cabe à administração municipal quitar os débitos do prédio – os permissionários pagam cotas individuais relativas ao uso de água de cada estabelecimento. 

Dessa forma, hoje, as contas gerais relativas à edificação histórica são gerenciadas pela Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (SMAP), mas mesmo esta é uma situação recente. À Matinal, a SMAP respondeu que a gestão do Mercado Público só foi assumida pela pasta em 2022, com todas as contas em dia desde então. A secretaria afirma que as pendências anteriores seriam relativas ao período em que outra pasta cuidou do prédio, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo. Procurada, a SMDET não havia se manifestado sobre a dívida até o fechamento da reportagem.

No top 5 dos devedores, a incerteza sobre quem deve arcar com débitos acumulados ao longo de anos também é uma realidade para o segundo e o quinto colocados, respectivamente o Condomínio do Conjunto Residencial Fernando Ferrari, no bairro Rubem Berta, e a antiga Cervejaria Brahma, fechada há um quarto de século. No caso do condomínio, cujos valores são calculados na casa dos R$ 2,893 milhões segundo a lista elaborada pelo Dmae, a situação não é nova: ainda em 2006, a Comissão de Defesa do Consumidor e Direitos Humanos da Câmara Municipal de Porto Alegre mediou as negociações para discutir um débito que, à época, ultrapassava os R$ 7 milhões para o conjunto habitado por cerca de 8 mil pessoas. 

Alternativas como um longo parcelamento e a individualização da cobrança foram discutidas na ocasião, e a dívida caiu com o tempo, embora continue sendo uma das mais altas da cidade. A reportagem buscou de diferentes maneiras contatar a administração do condomínio para atualizar a situação da cobrança, através de telefones disponibilizados nas redes sociais e grupos de moradores on-line, mas não localizou os responsáveis.

Outra situação em que há confusão nos dados disponibilizados pelo Dmae via LAI é a da antiga Cervejaria Brahma, com uma dívida calculada de R$ 1,487 milhão. O desencontro de informações começa já com a empresa à qual está atribuído o débito: embora o registro fornecido pelo Dmae coloque o valor ao lado do nome da Brahma, o CNPJ listado no documento pertence à Eagle Distribuidora de Bebidas e extinto há quase duas décadas, em 2005.

A Eagle era sediada em São Paulo e funcionava como um braço da união entre a Cervejaria Brahma e as Cervejarias Reunidas Skol Caracu SA, uma espécie de “sucessora natural” do empreendimento anterior. As empresas faziam parte do grupo empresarial Braco, gerenciado por Marcel Telles, Beto Sicupira e Jorge Paulo Lehmann. Em 1999, a fusão desse grupo com a Antarctica formou a Ambev. Tanto Eagle quanto Brahma estão com os registros das filiais de Porto Alegre inativos há pelo menos 15 anos, não havendo um contato atualizado do responsável local pela dívida.

Procurada pela reportagem, a assessoria do Dmae informou em um primeiro momento que a dívida de uma empresa extinta em 2005 já deveria ter caducado, considerando o prazo máximo de 10 anos para a cobrança. Mas, em nova mostra da falta de transparência sobre a situação concreta desses débitos antigos, outra fonte ligada ao departamento, que pediu para não ser identificada, disse que isso não ocorreu devido à abertura de processo ainda nos anos 1990, quando a dívida foi originalmente contraída. Um acordo só teria sido estabelecido em meados de 2017, culminando no pagamento de aproximadamente R$ 4 milhões, quitando a maior parte da dívida, embora ainda reste um valor milionário – possivelmente relacionado a juros – na lista apresentada via LAI. 

Refinanciamento é alternativa mais comum para devedores

Cervejaria Brahma funcionava onde hoje é o shopping Total | Foto: Cristine Rochol/PMPA

Entre o início da dívida e um acordo definitivo, podem se passar décadas de inadimplência, como no caso da Brahma. Enquanto isso, “é como se todos nós tivéssemos ajudado a subsidiar a operação da cervejaria”, resume Bruno Morassutti, do Fiquem Sabendo.

Segundo informou o Dmae através de sua assessoria, os mecanismos para coibir o atraso nas contas incluem a suspensão do abastecimento, cobranças administrativas e judiciais. A dívida só prescreve depois de passados 10 anos desde a última notificação de cobrança e, para quem opta pelo refinanciamento – alternativa mais comum do que a judicialização do débito –, a renegociação ocorre a partir de um parcelamento em 20 vezes, a um valor mínimo de R$ 97,20 por prestação. “As dívidas seguem crescendo porque, depois de 60 dias de inadimplência, o serviço de água é cortado, mas a dívida segue correndo com juros e correções monetárias”, comenta Adnaldo Fraga, membro do Conselho Deliberativo do Dmae e ex-funcionário do departamento, onde atuou por 32 anos.

Mas o corte nem sempre ocorre, por razões diversas. Na pandemia, por exemplo, as ações para interromper o serviço de água foram suspensas, o que aumentou temporariamente a dívida ativa. Já alguns serviços essenciais contam com critérios específicos para a restrição ou fornecimento de água mesmo em tempos normais, como é o caso de estabelecimentos de saúde. A Associação Hospitalar Vila Nova, por exemplo, enquadra-se nesse critério, mesmo acumulando a terceira maior dívida entre os CNPJs da Capital, em um valor calculado em R$ 2,498 milhões. À reportagem, a entidade afirmou que reconhece os valores em aberto com o Dmae e afirmou que está em processo de negociação e parcelamento da dívida para regularização.

Outro caso do tipo aparece na entidade citada como a quarta maior dívida no documento obtido pela reportagem, a Associação dos Funcionários Municipais de Porto Alegre (AFM), em um valor na casa do R$ 1,765 milhão. Procurada pela Matinal, a AFM disse que funciona como um convênio médico para os municipários, com filiação opcional, e que até 2016 existia uma parceria com a prefeitura que fomentava grande parte da verba da instituição. 

A AFM também alega que as dívidas que competiam a ela foram pagas, mas aponta que o antigo Hospital Porto Alegre era gerenciado pela entidade e teria acumulado dívida após o comando da unidade passar para uma nova gestão. Ao mesmo tempo, a associação ainda afirma que tem valores a receber do próprio Dmae, estimados em R$ 4 milhões, que teriam sido acumulados após o departamento não pagar as mensalidades dos seus servidores que eram associados à AFM.

Para Adnaldo Fraga, a demora em renegociar os valores pode passar uma imagem de que o Dmae “está sendo relapso com a cobrança de devedores”, especialmente porque os grandes débitos geralmente não estão atrelados a contas de cidadãos comuns. Além das empresas citadas nesta reportagem, instituições governamentais também aparecem na lista das grandes dívidas com o departamento, contribuindo para um valor total que era calculado na casa dos bilhões em 2021. “O próprio prefeito deveria responder pela transparência do Dmae. O Portal da Transparência do órgão estava totalmente defasado, e até para o conselho deliberativo fica difícil cobrar informações”, explica Fraga.

Na visão de Edson Zomar, servidor aposentado do Dmae e diretor de formação sindical no Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa), a precarização do órgão com vistas à privatização pode ter contribuído para uma ineficiência na cobrança de dívidas antigas. “Longe de culpar os funcionários terceirizados, mas essa política deixa eles explorados e sem preparo, causando uma série de problemas”, argumenta. A escassez de mecanismos mais eficientes para divulgar e cobrar as dívidas, entende Zomar, poderia ser “apenas um sintoma” da falta de investimento iniciada ainda na gestão de Marchezan.

Mesmo com a lista obtida via LAI, o cidadão que desejar se informar a respeito dos grandes devedores na capital vai esbarrar nos mesmos problemas que a reportagem e o próprio conselho deliberativo do Dmae encontram: além das dúvidas sobre o reconhecimento dos valores em si, há pouca clareza sobre o estado atual das renegociações e a instituição que deve ser responsabilizada pelas contas pendentes. “Quando o poder público tem transparência, a gente consegue fiscalizar. Isso é essencial para ter um controle efetivo, verificar se o valor está sendo cobrado de forma adequada, se não está havendo algum tipo de privilégio na cobrança, quais são os acordos realizados, ou se há ineficiência pura e simples mesmo”, destaca Bruno Morassutti. “Em uma cidade que não tem saneamento universal, ou seja, em que o serviço é caro e não entrega aquilo que se esperaria, é importante entender o que é feito com essa quantidade gigante de devedores”, diz o advogado.

Segundo Adnaldo Fraga, mesmo a inadimplência e o acúmulo de dívidas que não são pagas – ou demoram anos até encontrar resolução – não deveria afetar a capacidade de investimento do órgão, embora a prefeitura alegue escassez de recursos para, por exemplo, investir em geradores que ajudariam a manter o fornecimento da água quando há cortes de energia, como ocorreu após o temporal da última terça-feira (16) à noite. “O Dmae tem, atualmente, R$ 400 milhões investidos no mercado financeiro”, justifica. “Mas, ao mesmo tempo, essa receita deve ser buscada para dar uma satisfação à população que paga as contas em dia. Afinal, é a grande massa que mantém o Dmae e suas atividades”, conclui.

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