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Objetivos do Plano Diretor não trabalham com cheia do Guaíba

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Objetivos do Plano Diretor não trabalham com cheia do Guaíba Situação de inundação é mencionada apenas em objetivo referente à qualidade da água | Foto: Martina Lersch

Em meio ao seu processo de revisão, que deveria estar concluído em 2020, a prefeitura apresentou um documento com 200 estratégias organizadas em cinco objetivos para a elaboração do novo Plano Diretor. Divulgadas no fim do ano passado, nenhuma delas menciona “cheia”, “enchente” ou considera a elevação do nível do Guaíba, que atingiu  5,33m no último dia 5 de maio e inunda áreas inteiras da cidade há uma semana.

A proteção de inundações da capital aparece de forma indireta em apenas um item referente ao controle da qualidade das águas. Pela proposta, na parte do objetivo relacionado às adaptações à crise climática, o plano diretor deve elaborar instrumentos que promovam o uso racional de recursos hídricos e o combate à poluição, auxiliando no controle do “impacto do desequilíbrio climático no território, oriundo das ameaças climáticas de inundação fluvial”. 

Leia aqui na íntegra o documento construído em reunião da revisão e apresentado na última Conferência sobre o Plano Diretor, em novembro de 2023. Os debates para conclusão do Plano Diretor devem ser retomados no fim deste ano, após a eleição municipal, com previsão de ficar pronto em 2025.

Pressão imobiliária no objetivo sobre a orla

Entre os objetivos, o primeiro deles fala em “potencializar a apropriação do Lago Guaíba e de sua orla por parte da população, valorizando sua paisagem, a característica de cada local, o patrimônio histórico e as áreas naturais, atuando na qualificação das áreas verdes, desenvolvendo planos, projetos urbanos e estabelecendo incentivos, parcerias e regulamentações para a sua utilização”. 

Na avaliação da professora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (Propur) da UFRGS, Heleniza Campos, que também coordena o núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles, ao menos alguns dos objetivos deveriam ser elaborados em conjunto e não de maneira separada. À Matinal, ela aponta que há uma pressão do mercado imobiliário na definição do conjunto de estratégias voltadas à Orla do Guaíba, que passa a ver uma área de amortização de cheias com uma área para erguer empreendimentos.

Ela se refere ao Objetivo nº 1, no qual a primeira estratégia fala em “potencializar a apropriação do Lago Guaíba e de sua orla por parte da população, valorizando sua paisagem, a característica de cada local, o patrimônio histórico e as áreas naturais, atuando na qualificação das áreas verdes, desenvolvendo planos, projetos urbanos e estabelecendo incentivos, parcerias e regulamentações para a sua utilização”. 

“Na prática, toda a faixa de orla, desde o 4º Distrito, passando pelo Centro Histórico, Praia de Belas até a zona sul, tem sido alvo de interesse imobiliário, com flexibilização das leis para projetos especiais ocuparem espaços, sem qualquer cuidado com as condições ambientais existentes. Os planos diretores específicos para o Centro Histórico e para o 4º Distrito confirmam e reforçam a ação mercadológica por trás de decisões municipais”, afirma a professora. 

“Esta é a faixa que, a despeito dos valores paisagísticos, potencialmente está em condições mais instáveis de solo e sujeitas às inundações, conforme aconteceu agora”, complementa Heleniza. Imagens atuais da orla, como as da pista de skate e as quadras totalmente submersas, corroboram com a fala da professora. Os trechos 1, 2 e 3 da orla são costeados pela avenida Edvaldo Pereira Paiva, que integra o sistema de proteção contra cheias da cidade, servindo como um dique e contendo o avanço do Guaíba. A via é da mesma altura do Muro da Mauá, que protege o Centro Histórico – ou deveria, se houvesse manutenção constante.

Com ideia de construir torres, Cais está inundado

Outra situação que pode comprometer ainda mais a área é a ideia de construir nove torres no Cais Mauá, espaço público concedido à iniciativa privada no início do ano, em iniciativa celebrada pelo governo do estado e pela prefeitura de Porto Alegre. O local está inundado desde o fim de semana – situação que repete as cenas de novembro passado, quando o Guaíba também havia ultrapassado os 3 metros de altura. Na época, a Matinal mostrou que o edital do projeto desconsidera a elevação do Guaíba causada pelas mudanças climáticas, o que deve ocorrer com mais frequência nos próximos anos. 


Imagem do projeto para o Cais Mauá, que está inundado pela segunda vez em menos de sete meses

O Cais Mauá, próximo à área onde as torres devem ser construídas, em 5 de maio de 2024 | Foto: Gustavo Mansur / Governo do estado

O projeto sugerido no edital considera a retirada de parte do muro, ainda que condicione tal obra à implantação de um novo sistema de defesa contra enchentes. O sistema de Porto Alegre é projetado para defender a cidade de um nível de Guaíba a 6 metros. 

Na região central, outro ponto que colabora com as inundações foram as recentes obras no Parque Harmonia, que trocaram solo permeável por materiais mais rígidos, diminuindo a capacidade de absorção da área. As obras no local viraram alvo de muitas críticas por parte de movimentos ambientais em 2023 e chegaram a ser interrompidas por liminar, mas logo retomadas. 

Ainda dentro do Objetivo 1, na estratégia que se refere às ilhas, o texto sugere: “Definir regime urbanístico para as ilhas, buscando garantir o desenvolvimento sustentável para as comunidades locais existentes, qualificando sua relação com o Delta do Jacuí e com o Lago Guaíba e priorizando a preservação das Áreas Naturais, através de instrumentos de gestão urbana”.

Sobre adaptação, é preciso plano de realocação

Já o objetivo número 4, que trata da adaptação da cidade para os efeitos das mudanças climáticas e para a redução das emissões de gases do efeito estufa (e que menciona indiretamente a questão das cheias do Guaíba), as estratégias abordam eventos climáticos, áreas de risco, incentivos à preservação ambiental, zoneamento ambiental e monitoramento. 

A primeira delas é a criação de “um plano de ação para a realocação das pessoas inseridas em áreas de risco ou para a mitigação do risco, além da realização da recuperação das áreas, envolvendo mapeamentos e avaliação de risco, identificação das áreas com restrição de ocupação, integração com políticas de habitação, estabelecimento de tipologias e infraestrutura e o monitoramento destas áreas, além da criação de mecanismos de revisão e controle periódico de diagnósticos de áreas de risco”. 

Apesar da estratégia, o documento não cita como fazer, tampouco avança sobre eventuais responsabilidades ou fontes de recursos para viabilizar os objetivos. 

“Talvez seja necessário reconsiderar a faixa de orla associada à ocupação e densificação, mas ampliar o conceito de risco, ao menos para a parte afetada ou passível de ser afetada”, sugere a professora da UFRGS. “As restrições de ocupação, políticas de habitação e recuperação de áreas não se restringem apenas a áreas de ocupação de baixa renda, mas têm ampla incidência no território de todo o município”, acrescenta Heleniza. Ela destaca também a pouca observância das condições de habitabilidade em áreas mais vulneráveis ou de ocupação ao longo do processo de revisão do plano

Ao longo desta crise, evidenciou-se essa necessidade com o próprio poder público: a prefeitura precisou realocar desabrigados, oriundos de áreas de risco, em duas oportunidades. Primeiro, ainda durante o fim de semana, a retirada dos abrigados do Pepsi On Stage, até então o local com maior número de acolhidos, para a Academia da Brigada Militar, no Partenon. Na segunda-feira, dia 6, em razão da falha na casa de bombas próxima à rótula das cuias, foi necessária a evacuação do Teatro Renascença, até então o centro de triagem de abrigados. 

Integração do espaço urbano

Levando em consideração as consequências da enchente, a professora também trata como necessária a revisão da estratégia 3 do objetivo 4, que versa sobre zoneamento ambiental. “O espaço urbano necessita ser incorporado neste processo, considerando as condições do bioma, das bacias hidrográficas envolvidas e a forma como tais espaços são ocupados”, afirma Heleniza. 

Ainda dentro do objetivo 4, a estratégia 7 fala em “Desenvolver incentivos que promovam a preservação do patrimônio natural, tais como incentivos urbanísticos, tributários e pagamento por serviços ambientais (PSA), entre outros”. Para a professora, é necessário detalhar a estratégia e contar com a participação da sociedade: “Mais do que incentivos, fundos destinados à recuperação em situações de risco”. 

A participação da população – pouco observada em algumas das conferências sobre o Plano já realizadas – é necessária para a capacitação junto a técnicos municipais. “Trata-se de orientação às comunidades moradoras de áreas consideradas vulneráveis a distintos tipos de riscos ambientais.” 

Ano passado, a prefeitura de Porto Alegre publicou estudo que contabiliza cerca de 20 mil famílias morando em 142 áreas de risco em Porto Alegre. O total desse contingente quase dobrou em dez anos. A solução, de longo prazo, apresentada à época era transferir as famílias para locais seguros e evitar a reocupação com ações de desenvolvimento urbano. Contudo, a gestão Sebastião Melo (MDB) apontou dificuldades financeiras para executar esse plano. O valor estimado para a remoção de todas essas famílias foi de R$ 2,3 bilhões.


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