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Entenda a proposta da prefeitura de Porto Alegre para bancar a despoluição do Dilúvio

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Entenda a proposta da prefeitura de Porto Alegre para bancar a despoluição do Dilúvio Máquina da prefeitura remove resíduos do Arroio Dilúvio (Fotos: Pedro Piegas / PMPA)

Sebastião Melo quer permitir a construção de prédios mais altos para criar um fundo de investimento destinado à limpeza do arroio, que pode durar 30 anos. Especialistas consideram proposta contraditória e precária 

A água escura carrega lixo, dejetos e metais potencialmente tóxicos enquanto corta ao meio toda a avenida Ipiranga, uma das principais da capital gaúcha. A poluição do arroio Dilúvio, córrego com 28 km de extensão que atravessa dois municípios, é resultado do despejo de mais de 50 mil metros cúbicos de lixo e terra a cada ano, equivalente a 10 mil caminhões-caçamba cheios. Essa sujeira deságua no rio Guaíba, um dos cartões postais da cidade.

Para tentar resolver o problema antigo, a prefeitura de Porto Alegre estima um investimento de R$ 1,5 bilhão na despoluição do arroio, mas diz não ter recursos. “O orçamento é bastante escasso. As prioridades devem ser saúde, segurança e educação”, alega Germano Bremm, titular da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus). “Por isso, buscamos um modelo urbanisticamente viável a fim de atrair a iniciativa privada para financiar a recuperação ambiental do Dilúvio”, explica.

A alternativa visada pela gestão de Sebastião Melo (MDB) é a operação urbana consorciada (OUC), inspirada no modelo da capital dinamarquesa, Copenhague. Funciona assim: a prefeitura paga para que uma empresa ou consórcio estude maneiras de despoluir o Dilúvio. A empresa selecionada também realiza estudos urbanísticos e ambientais para liberar o potencial construtivo ao longo da Ipiranga. Essa liberação, na prática, significa um aumento da altura máxima permitida para a construção de edifícios em volta do córrego.

Cada terreno tem um potencial construtivo pré-definido, que pode ser ampliado a partir da compra de um título de solo criado. É um certificado que o construtor adquire da prefeitura e que permite construir uma área maior, não apoiada diretamente na superfície do terreno, mas em pavimentos superiores ou subterrâneos. Depois da modelagem feita pela OUC, a prefeitura leiloa certificados de potencial construtivo de forma antecipada. O dinheiro dessa venda vai para um fundo destinado à recuperação do Dilúvio.

A nascente do Dilúvio fica no parque Saint’Hilaire, que tem parte do território no município de Viamão. Embora a intenção da prefeitura de Porto Alegre seja estudar e despoluir toda a extensão do arroio, a revitalização está prevista para acontecer por trechos, a começar pela parte mais próxima do Guaíba. E conseguir o R$ 1,5 bilhão e limpar o córrego será um processo lento: em estudos preliminares, a administração municipal calcula que levará 30 anos. 

“Vai haver várias ações, algumas menores, outras de impacto um pouco maior. É um processo que se desenvolve ao longo dos anos”, afirma Bremm. “Talvez a poluição não seja resolvida na totalidade, mas em algum grau. Assim como a ecobarreira já consegue fazer a retenção do resíduo sólido. A modelagem vai ter essa condição de indicar onde são os piores cenários dentro de toda a extensão do Dilúvio”, diz.

Para a arquiteta Paula Motta, vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS), “não existe vantagem” na realização de uma OUC como a proposta. “É um instrumento urbanístico com um foco econômico, já que atrela o desassoreamento do arroio a futuros empreendimentos imobiliários”, pondera. “O foco é no desenvolvimento da região a partir da construção desses prédios, usada como uma justificativa para a limpeza do Dilúvio. Acaba sendo uma espécie de ‘compra casada’, já que a limpeza deveria existir por si só, mas está atrelada aos empreendimentos”.

Instrumentos como a OUC têm sido usados pela prefeitura para “desenvolver” determinadas regiões onde o mercado imobiliário possui maior interesse, segundo a arquiteta. “Levando em consideração as imagens disponibilizadas pela prefeitura, em maio do ano passado, é possível perceber que a área de interesse é a área próxima à orla do Guaíba e ao Centro Histórico, territórios que estão muito visados nas últimas gestões”, diz. 

A falta de uma visão mais ampla sobre a despoluição do Dilúvio também é vista como um entrave da proposta. Professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, Fernando Dornelles explica que não adianta apenas limpar o arroio e torná-lo mais propício para o contato dos cidadãos com a água. Tudo o que gera detritos que acabam indo parar no Dilúvio precisa ser, de certa forma, organizado para que essa sujeira não acabe na água. 

Por isso, o especialista teme que a OUC se encaminhe para um “embelezamento” das margens do Dilúvio sem atuar em todo o curso d’água, formado pelo território que fica na superfície da bacia de drenagem. “O curso d’água é um integrador das atividades que existem ao longo da bacia hidrográfica: se tem vazamento de combustível num posto, ele vai acabar chegando no arroio. Se tem um bairro onde a coleta de esgoto não é eficiente, as chuvas levam esse material da superfície para a rede de drenagem, que larga tudo no canal principal – no caso, o Dilúvio”, afirma.

Próximos passos

A Smamus está verificando se os três concorrentes que se inscreveram no edital, lançado pela prefeitura em dezembro do ano passado, estão habilitados para a OUC. De acordo com a secretaria, não existe um prazo pré-definido para essa análise e, se nenhum consórcio estiver apto, a licitação será aberta novamente. A administração municipal prevê pagar até R$ 6,42 milhões pela modelagem, que deve ser executada em 18 meses. 

O secretário Germano Bremm esclarece que o vencedor do edital não vai construir novos prédios na avenida Ipiranga. “O consórcio escolhido vai fazer apenas a modelagem urbanística, econômica, jurídica e ambiental”, diz.

A modelagem executada pelo consórcio escolhido dará origem a um projeto de lei, que será remetido à Câmara para delimitar o território em que a OUC poderá operar. “Após a aprovação do projeto, a prefeitura de fato implementa a operação, emite certificados de potencial construtivo e eles vão a leilão. Aí começa a operar o fundo específico para gerir esses recursos, criado na lei”, explica Bremm. A ideia é que, com o dinheiro, além do desassoreamento e limpeza do Dilúvio, seja feito um parque às margens do arroio – o “embelezamento” do local valorizaria ainda mais o potencial construtivo nos arredores.

Existe uma diferença entre recuperar e revitalizar o Dilúvio. Recuperar seria apenas fazer a limpeza do curso d’água. A OUC, por outro lado, prevê uma revitalização: além da limpeza, serão feitas intervenções urbanísticas, explica Dornelles. “Revitalizar é dar um novo uso. Criar um parque [como o proposto pela prefeitura], integrar o arroio ao ambiente”, diz. 

 Arte divulgada pela prefeitura de como deve ficar a avenida Ipiranga, próxima ao Guaíba, após a OUC

Mais gente, mais esgoto

Incentivar a construção de prédios mais altos na avenida Ipiranga, um dos objetivos da OUC, traria mais gente para os arredores do Dilúvio. Foi justamente o adensamento populacional em Porto Alegre, a partir da década de 1960, que contribuiu para que o arroio ficasse poluído como está hoje. 

A água era limpa no início do século passado. Mas, quando chovia demais, o córrego – conhecido como “Riacho” ou “Riachinho – transbordava e causava grandes enchentes, principalmente nos bairros Menino Deus, Santana, Azenha e Cidade Baixa. A maior cheia aconteceu em 1941, quando cerca de 70 mil pessoas ficaram desabrigadas. Na década seguinte, começaram as obras para a canalização do Arroio Dilúvio, só concluídas em 1976.

Nesse meio tempo, a capital gaúcha foi recebendo mais moradores e indústrias. O processo de urbanização da cidade transformou o córrego em receptor de esgoto e sujeira. Paula Motta, do IAB RS, alerta que os empreendimentos previstos podem gerar um impacto muito grande na região. “Podem dificultar a própria despoluição, o que acaba sendo uma grande contradição”, afirma.

O secretário Germano Bremm afirma que os estudos de impacto ambiental também são objeto da OUC. “A modelagem vai receber um investimento significativo, justamente para que se amarrem todas essas pontas. Prevemos estudos urbanísticos, econômicos e de impacto ambiental”, explica.

De onde vem a sujeira?

O sistema de esgoto em Porto Alegre é misto. Significa que uma mesma rede concentra o esgoto pluvial, formado pelas águas das chuvas; e cloacal, originado nas residências. Os detritos passam por estações de tratamento e deságuam no Guaíba, mas não sem antes serem carregados pelo Dilúvio.

O professor Fernando Dornelles, do IPH, explica que o sistema misto dificulta o direcionamento do esgoto sanitário para as estações de tratamento. “A poluição do arroio Dilúvio é difusa, não conseguimos detectar exatamente de onde vem. São várias pequenas contribuições em toda a superfície da bacia hidrográfica, além do esgoto que infiltra no solo e que consegue chegar nos cursos d’água”, afirma.

Uma solução seria aumentar a eficiência do sistema misto: interceptar o esgoto, para destiná-lo corretamente às estações de tratamento, nos períodos em que não chove. “Seria um projeto baseado em saber onde está a origem da maior quantidade de poluição, mas isso ainda é uma caixa preta. Não existe uma lei que fiscalize qual a manutenção e funcionamento das fossas e sumidouros, por exemplo”, diz o professor.

Bremm admite que nunca se estudou, com “profundidade técnica”, as origens exatas da poluição do Dilúvio. O secretário afirma que a OUC deverá fazer o monitoramento das origens do esgoto, e que a falta dos dados “encareceu bastante” a contratação dos estudos.

O professor se preocupa com o fato de a prefeitura dependa apenas da venda de solo criado, como no caso da OUC, para resolver os problemas de saneamento da capital. “O saneamento não deveria ser bancado [apenas] com esse dinheiro”, afirma.

O titular da Smamus diz que a prefeitura já dispõe dos recursos para financiar, pelo menos, uma fase da OUC “Com os recursos do leilão, ao invés de investir na primeira fase, a gente investe na segunda, e assim sucessivamente. Vira um círculo virtuoso e tem essa segurança jurídica”, afirma Bremm.

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