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Rio ou lago? Guaíba precisa mesmo é de nova lei para proteger suas margens

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Rio ou lago? Guaíba precisa mesmo é de nova lei para proteger suas margens Se o Guaíba for um rio, podem estar proibidas as construções a até 500 metros da margem; Se for um lago, área de preservação permanente (APP) é bem menor, de apenas 30 metros. Foto: Filipe Karam/PMPA

Na confluência dos rios Jacuí, Caí, dos Sinos e Gravataí, forma-se um corpo d’água que deságua 50 quilômetros ao sul, na Lagoa dos Patos, após cruzar a ponta de Itapuã. Em sua margem oeste está Porto Alegre, a capital situada neste lugar privilegiado justamente pelo encontro desses rios. Mas a classificação desse caudal não é consenso. Tampouco se trata de um debate estritamente semântico: há implicações práticas distintas de se construir uma cidade à beira de um rio ou de um lago.

Se estivesse vigente desde 26 de março de 1772, dia da fundação de Porto Alegre, a atual legislação não teria permitido a edificação da maioria dos bairros da cidade. O Código Florestal brasileiro, válido desde 2012, delimita com expressiva diferença a conservação natural, mesmo em áreas urbanas, nas beiras de cada tipo de corpo d’água. 

Se o Guaíba fosse um rio, estariam proibidos os prédios erguidos a até 500 metros da margem, por conta de sua largura. Se for um lago, como se definiu nos anos 1990, a área de preservação permanente (APP) é bem menor, de apenas 30 metros a partir da orla, independente do tamanho. 

O governo do Rio Grande do Sul chama o Guaíba de lago desde 1998, quando instituiu o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba. Agora, a capital poderá ter uma legislação específica sobre o tema no futuro: em abril deste ano, a prefeitura determinou a realização de um estudo socioambiental para definir as faixas onde as construções estarão proibidas. O poder de legislar sobre a proteção dos mananciais foi permitido por uma lei aprovada durante o governo Bolsonaro e criticada por ambientalistas. 

Após as recentes enchentes, o tema voltou aos holofotes. Desde o ano passado, uma ação civil pública questiona a definição de Guaíba como um lago. O processo, de autoria do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá), tem como objetivo preservar a cidade e o Guaíba, impondo uma faixa de 500 metros a partir da margem sob proteção permanente da lei.

Se a tese do rio prevalecer, não é como se uma significativa parcela de Porto Alegre devesse ser colocada abaixo. Mas o que ainda será construído na área que nos últimos anos ganhou mais atenção do setor imobiliário porto-alegrense não poderá seguir adiante. Na hipótese de ser um lago, a legislação brasileira não faz distinção da área do espelho d’água: não importa se estamos falando de um pequeno açude ou um grande lago. A faixa de proteção é de apenas 30 metros da margem, equivalente a um terço de um campo de futebol.

“De uns tempos para cá, passaram a chamar o Guaíba de lago, quem sabe dez anos, talvez um pouco mais. O que sempre foi rio muda sua definição, alterando profundamente a questão da preservação das margens. Essa tese é abraçada pela construção civil, e o que acontece em Porto Alegre é a especulação imobiliária avançar de forma furiosa na margem”, justifica o presidente do MJDH, Jair Kirschke.

Essa faixa de proteção de 500 metros em linha reta valeria para a maior parte de Porto Alegre. Nas regiões costeiras, as exceções seriam as partes da cidade mais ao norte, onde o corpo d’água é consideravelmente mais estreito. Na região da antiga ponte do Guaíba, a água ocupa cerca de 300 metros de uma margem à outra, o que reduziria a área de preservação permanente para 200 metros sem construções.

Ao sul do Gasômetro, onde o Guaíba se alarga consideravelmente, a área de conservação englobaria parte relevante da cidade. Na região da usina, contando 500 metros em linha reta, chega-se à rua General Portinho, com boa parte das quadras mais a oeste do Centro Histórico no caminho. No trecho 3 da orla, perto da foz do arroio Dilúvio, 500 metros alcançam a avenida Praia de Belas, no bairro homônimo, ou mesmo atingindo as primeiras quadras do Menino Deus, mais ao sul.

A ação civil pública quer barrar o avanço de megaempreendimentos como os que mudaram, vêm mudando ou mudarão o horizonte porto-alegrense. Os exemplos são as futuras torres do Cais Mauá, as atuais obras do parque Harmonia, a possibilidade da construção de arranha-céus no terreno do estádio Beira-Rio, do complexo do Pontal, do condomínio Golden Lake, ou, mais ao sul, do condomínio Fazenda do Arado, no Belém Novo.

“A ação, inicialmente, pediu uma liminar que, se tivesse sido concedida, impediria a tragédia ecológica do Parque Harmonia. Para o futuro, por outro lado, como será o caso do Anfiteatro Pôr-do-Sul, no trecho 2 da orla, ainda se pode obstar um projeto ambientalmente terrível”, disse Kirschke, em entrevista à Matinal.

O uso recreativo, como é o exemplo dos trechos 1 e 3 da orla, segundo Kirschke, poderia ainda ser incentivado, mesmo na hipótese do Guaíba como um rio. “Esse tipo de utilização, se não criar danos à natureza, se não colocar árvores abaixo, ou aterrar restingas, não é o problema. O que não se pode é criar problemas muito maiores, ligados à ventilação da cidade, à preservação das espécies, à qualidade da água que bebemos”, argumentou.

Se a necessidade de preservação é saudada no meio científico porto-alegrense, a definição do que é o Guaíba provoca cisão entre pesquisadores em uma mesma universidade. A ação civil pública utiliza, entre outros estudos, um parecer do professor Elírio Ernestino Toldo Jr., docente do curso de geologia e do Programa de Pós-Graduação em Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O pesquisador aponta que o volume d’água que transita no Guaíba é tão significativo que o tempo de permanência na bacia é em média de uma semana. “Ou seja, toda água contida pode ser renovada nesse período”, fato que o caracterizaria como um curso d’água ou rio, portanto sujeito a uma área de proteção mais extensa.

Outro fator é o padrão de circulação e sedimentação “associada a cursos fluviais que se desenvolvem em superfícies de terras baixas”, como é o caso da planície costeira do Rio Grande do Sul. Um terceiro critério é o volume de sedimentos que transita no Guaíba, da ordem 1 milhão de metros cúbicos por ano. Se essa quantidade de material não fosse transportada regularmente para a Laguna dos Patos, toda a região estaria bloqueada. Esses três aspectos classificariam o Guaíba como rio, como foi até o ano de 1998, sob a perspectiva do governo estadual.

A ação civil pública também cita instituições de referência que definem oficialmente tal toponímia como “rio Guaíba”, como é o caso do Banco de Dados Geográficos do Exército (BDGEx) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Se a necessidade de preservação é saudada no meio científico porto-alegrense, a definição do que é o Guaíba provoca cisão entre pesquisadores. Foto: Alex Rocha/PMPA

A hipótese lacustre

O Guaíba recebe água e sedimentos de oito bacias. Sua região hidrográfica, portanto, abrange uma área que representa um terço do Rio Grande do Sul, com 251 municípios que abrigam 60% da população gaúcha.

Para outra vertente da geologia, porém, a estratégia de definir o Guaíba como um rio não é produtiva e tampouco cientificamente rigorosa. O argumento lacustre defende que esses corpos d’água são receptores – no caso dos rios Jacuí, Caí, Rio dos Sinos e Gravataí –, que têm margens com pontas e enseadas, além das matas de restinga, típicas dos lagos.

“Os lagos são mais sensíveis que os rios. No Guaíba, podemos perceber a cada verão, a água estagnada devido à eutrofização por contaminantes, em secas. Precisamos de leis ambientais melhores, e não a troca do nome. Para defender a orla, não abdiquemos da inteligência”, defende Rualdo Menegat, também geólogo e professor da UFRGS. Ele é autor da obra “Manual para saber por que o Guaíba é um lago”, de 2009.

O docente sustenta que faltam leis mais severas para a proteção de lagos que, segundo o especialista, deveriam ser tão protegidos como os rios. O problema, portanto, estaria na lei, para além das questões técnicas. Para Menegat, a legislação brasileira é “fluvialista” ao não criar áreas de preservação permanente relevantes de acordo com o tamanho de cada lago. “Nós, no Rio Grande do Sul, somos um território de grandes lagos. Temos os maiores reservatórios lacustres do país, e lutamos pouco por eles”, esclarece.

A confluência de todos esses rios, com afluentes e nascentes nas partes mais altas do estado, indica que o Guaíba recebe materiais das bacias, seja da agropecuária praticada no interior, seja dos rejeitos industriais e residenciais da região metropolitana. 

A necessidade de preservação em toda a região hidrográfica não implica, para o professor, na adoção do conceito de rio. “Há um delta, um arquipélago de 18 ilhas e 14 canais. Essa desembocadura demonstra a formação de um lago. Não podemos rasgar manuais de geomorfologia, desconsiderar que a região é um delta, que é um bem precioso e estupendo, que filtra as águas”, argumenta. 

Outro argumento a favor dessa classificação é que as margens, sobretudo as que estão ao sul do Gasômetro, tem forma e vegetação própria de lagos. “A orla é mais mansa que a de um rio, que arrasta as margens por onde passa”, explica Menegat.

Também conta o fato que o Guaíba não tem um desnível e está inteiramente no mesmo patamar do nível do mar e da própria largura do corpo d’água, que pode alcançar 19 quilômetros de uma margem à outra em seu ponto mais amplo. Em setembro, sob influência de um forte ciclone, o vento sustentado de sul retardou o escoamento de água. Isso provocou a subida na extremidade norte, causando inundações no  bairro Arquipélago, desde o delta até o município de São Jerônimo, quase 50 quilômetros acima no rio Jacuí. Essa suscetibilidade à força dos ventos é, para Menegat, outra prova de que se trata de um lago.

O professor diz não haver indefinição na bibliografia que determina o que são rios ou lagos. E é taxativo: Guaíba é um corpo lacustre. “Posso citar dezenas de manuais que refutam essa ideia de ser um rio. Pesquisadores do mundo todo, em estudos conceituados e estabelecidos pela tradição científica, fazem essas distinções. Nos capítulos sobre lagos, define-se que são corpos d’água mais complexos, em variedade e diversidade muito maior que os rios”, sustenta.

Depois do Gasômetro, Guaíba se alarga e chega a ter 19 quilômetros entre suas margens. Foto: Filipe Karam/PMPA

À margem da lei

A ação civil pública citada nesta reportagem tramita na Justiça Estadual do Rio Grande do Sul. As entidades responsáveis, ainda em abril do ano passado, ingressaram com o processo na instância federal, por conta da presença de povos indígenas em áreas de preservação permanente, na região da Ponta do Arado, zona sul de Porto Alegre. A ação, entretanto, foi reconduzida ao estado, e ainda não teve sua audiência inicial.

“Estamos enfrentando um momento de protelação. A primeira audiência foi desmarcada neste ano, porque as partes não foram notificadas. Houve outra tentativa, mas a juíza a remarcou para 2024. Vão procrastinando. O Ministério Público se manifestou pedindo perícia técnica sobre o status do Guaíba, e estamos de acordo que se faça essa análise”, conta Kirschke.

Em 2021, Bolsonaro sancionou uma lei que dá aos municípios o poder de regulamentar as Apps à beira de rios e lagos nos seus limites urbanos. Foto: Cesar Lopes/PMPA

Porto Alegre terá lei própria sobre áreas de preservação

O Código Florestal brasileiro estabelece como área de preservação permanente toda a área a pelo menos 30 metros de um curso d’água que tenha a partir de 10 metros de largura. Por outro lado, a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, de 1979, estabelece 15 metros em áreas urbanizadas. Em 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o Código Florestal vale também para áreas urbanas. 

No mesmo ano, o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou uma lei que dá aos municípios o poder de regulamentar as faixas de restrição à beira de rios, córregos, lagos e lagoas nos seus limites urbanos. Essa mudança, aprovada sob influência do lobby de construtoras, tende a enfraquecer as áreas de preservação permanente devido às pressões do mercado imobiliário sobre as câmaras de vereadores, conforme disse a ex-presidente do Ibama, Suely Araújo.

Porto Alegre começou a se mover neste sentido. Em maio, o prefeito Sebastião Melo sancionou uma lei ordenando que se realize um diagnóstico socioambiental para o município definir quais são as faixas de margens não edificáveis em APPs na área urbana da cidade.

A reportagem da Matinal questionou a prefeitura sobre a perspectiva de se enviar à Câmara Municipal uma proposta de legislação própria sobre as áreas de preservação permanente na cidade. A Secretaria de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) confirmou que o município deve ter um projeto de lei própria, mas não deu detalhes sobre o teor dessa proposição. 


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