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“Um trauma coletivo agrava o estresse pós-traumático”, diz psiquiatra que coordenou o atendimento a sobreviventes da boate Kiss

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“Um trauma coletivo agrava o estresse pós-traumático”, diz psiquiatra que coordenou o atendimento a sobreviventes da boate Kiss Foto: Acervo pessoal

Nesta entrevista, o professor da Universidade Federal de Santa Maria Vitor Calegaro fala sobre o luto das famílias afetadas pela tragédia que acaba de completar 10 anos

Dez anos depois do incêndio na boate Kiss, que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas, o impacto na saúde mental dos sobreviventes e das famílias de vítimas da tragédia em Santa Maria ainda é pauta. A experiência adquirida pelos profissionais da saúde que atuaram no acompanhamento das pessoas envolvidas no trauma transformou a cidade em referência na área. 

Desde 2013, Santa Maria conta com o Centro Integrado de Atendimento à Vítima de Acidente (Ciava), no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), além do serviço prestado pela prefeitura, Santa Maria Acolhe. Professor do Departamento de Neuropsiquiatria da UFSM, o médico Vitor Crestani Calegaro coordenou, até o ano passado, o atendimento psiquiátrico aos sobreviventes da Kiss no Ciava, que oferece também outras especialidades. Por cinco anos, o centro contou com convênio do Ministério da Saúde, e prestou 18,2 mil atendimentos a 602 pacientes da Kiss – desse total, 25 permanecem em tratamento na psiquiatria e pneumologia. Depois desse período, o Ciava passou a atender também vítimas de outros acidentes. Nos últimos 5 anos, foram registrados 2 mil atendimentos. Isso porque, inicialmente, havia mais demandas para especialidades variadas, como fisioterapia, nutrição e cirurgias reparadoras.

Calegaro já foi convidado para palestrar em outros estados e até fora do país para falar sobre a experiência de Santa Maria. Em 2019, defendeu sua tese de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), intitulada O incêndio da boate Kiss: investigação da relação entre personalidade, psicopatologia e resiliência.

Em entrevista ao Matinal, concedida na semana passada por WhatsApp, o professor destaca que mesmo em situações de trauma coletivo, é preciso considerar que existem componentes singulares de cada indivíduo, de questões genéticas a experiências prévias, que ajudam a explicar as diferentes reações de cada pessoa envolvida com a tragédia, e que impactam também no transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A seguir, os principais trechos da entrevista.

O fato de um luto ser coletivo e tão publicizado na imprensa ajuda ou atrapalha na hora de lidar com o trauma?

Não diria só luto coletivo, porque não foi só luto que aconteceu, teve as pessoas que sobreviveram, foi um evento que afetou muita gente. O fato de ser um trauma coletivo, independentemente de haver morte ou não, já é um agravante na questão do desenvolvimento de estresse pós-traumático e outros problemas. Por outro lado, a sociedade também contribui de alguma forma, como na formação de grupos. Na coletividade podem ser proporcionadas formas de alívio, de elaboração dos traumas. Vamos pensar num exemplo que é bem o caso da Kiss. Passou um ano, dois, e a pessoa está seguindo a sua vida, mas vai ter sempre pessoas que vão saber o que aconteceu, a própria mídia, as notícias. Por ser coletivo, vai ter muito mais lembrete do que aconteceu. Um exemplo pessoal: por muitos anos, quando eu ia para a praia fora do Rio Grande do Sul, quando eu dizia que sou de Santa Maria, as pessoas falavam: “Ah a cidade lá, onde aconteceu a tragédia. E aí, como foi? Tu conhecia alguém?” E seu se eu conhecesse? E se eu estivesse lá? O que eu ia responder? 

Há pacientes em atendimento ainda hoje pelo Ciava? 

Há, sim, alguns pacientes da Kiss ainda sendo atendidos, principalmente no acompanhamento psiquiátrico. Mas hoje o Ciava também atende sobreviventes de outros acidentes. Da Kiss o número é bem menor atualmente, ao longo do tempo o pessoal vem se recuperando.

Qual o perfil dos pacientes que permaneceram em tratamento por mais tempo? 

São pessoas que enfrentaram transtornos crônicos, não só transtorno de estresse pós-traumático, mas também depressão ou outras coisas. Temos que levar em consideração que o trauma acontece num determinado momento da vida de um sujeito, que tinha uma história prévia e que vai ter uma história depois do trauma. Traumas prévios agravam a resposta. E depois que acontece o trauma, podem se somar outras situações estressantes, como perda financeira, dívidas, acidentes, questões de relacionamento. A gente não pode pensar só no trauma como algo determinante, até porque ele não é determinante. De maneira geral, a maioria das pessoas tende a se recuperar bem ao longo do tempo, mas varia muito de uma pessoa para outra. Chega um momento do tratamento em que, às vezes, nem a questão do trauma em si é o tópico principal. Acabam entrando outras coisas. E o trauma vai ser interpretado, vai haver uma tentativa do indivíduo de entender o que aconteceu à luz dos outros acontecimentos da sua vida. Isso vai influenciar também a maneira como ela passa a enxergar os eventos futuros que vão acontecendo na vida dela.

Algo que é muito abalado em eventos traumáticos é a confiança. É muito comum uma pessoa com um TEPT crônico passar a ter dificuldade nos relacionamentos, de se envolver, porque ela tende a ficar mais desconfiada. É só um exemplo de como, no tratamento, vai se falar de outras coisas da vida, muitas com uma certa ligação com o evento traumático. Por isso a importância do olhar especializado, da expertise em situações traumáticas. É diferente de uma psicoterapia de uma pessoa que não passou por eventos traumáticos.

Há relatos de um sentimento de desconforto na cidade com a dor das famílias, gente que diz “chega de sofrer” e acha que é “hora de seguir adiante”. Na sua visão, o que explica esse comportamento? De alguma forma essas pessoas elaboram um luto também, ainda que não sejam afetadas diretamente com a perda de alguém próximo?

Não só como médico, mas como cidadão santa-mariense percebo dois discursos antagônicos. A gente vê manifestações como essas que tu traz, que dizem que já passou muito tempo, deixa para lá, e que condenam, nas redes sociais, certas atitudes dos pais, por exemplo. E tem outras pessoas, que eu acho que são maioria, que podem não ter tido nada a ver com a Kiss diretamente, de conhecer alguém, mas que se identificam com os pais, que conseguem entender suas razões e apoiam e valorizam. 

Por que as pessoas se manifestam dessas formas? As pessoas são diferentes, a maneira como interpretam as coisas. Para além da questão da Kiss, que é o tema aqui, se a gente olhar as manifestações das pessoas com relação às notícias sobre o contexto político, são diversas e muitas vezes extremistas, que fazem julgamentos precipitados, julgam sem entender exatamente aquilo, seja qual for o tema, e em conversa ou na rede social. E sem também perceber o impacto dessa manifestação, da sua liberdade de expressão, nos outros. Acho que isso faz parte do ser humano, esse tipo de reação antagônica. Claro que no meio desse antagonismo, tem uma massa que tá no meio do caminho, estamos falando de extremos. É um fenômeno que a gente tem visto aparecer muito ultimamente, independentemente se falamos da Kiss ou outros assuntos da sociedade. E todo o extremismo tem um potencial danoso, seja político, seja religioso, etc. Extremos normalmente não são coisas boas.

Existe uma leitura de por que isso acontece. Tem mecanismo de defesa, tem questões cognitivas, no sentido de como a pessoa faz as suas cognições, crenças, seus pensamentos sobre os fatos. Mas é um assunto bem amplo para tentar reduzir em poucas linhas.

Que aprendizados para a área de saúde mental os profissionais da cidade podem aplicar ainda hoje?

O Ciava, do Hospital Universitário, e o Santa Maria Acolhe, que é da prefeitura, são serviços criados a partir do evento da Kiss. Ali foi desenvolvido muito conhecimento, experiência e sensibilidade para lidar com pessoas traumatizadas. Esse é um conhecimento que acabou fazendo com que Santa Maria se tornasse referência no cuidado de sobreviventes ou vítimas de traumas e se tem reconhecimento nacional e internacional. Na prática, somos convidados para fazer intervenções em outras cidades e estados para levar nossa experiência para ajudar as pessoas a como avaliar pessoas vítimas de traumas, como acompanhá-las e cuidar delas ao longo do tempo em uma perspectiva multiprofissional. São várias áreas envolvidas, não só áreas médicas, que devem ser integradas num tratamento quando a gente fala também de traumas que envolvem lesões físicas, por exemplo. Então há vários aprendizados sobre manejo, abordagem, cuidado de pacientes.

E tem vários aprendizados a nível mais científico. No caso da minha tese, sobre o entendimento de como acontece a psicopatologia pós-traumática, o entendimento dos fatores de risco, qual a relação com a resiliência, com a personalidade. São coisas que não trazem um impacto direto para as pessoas, mas indireto no sentido de que dá mais luz, mais conhecimento nessa área e acaba ajudando os profissionais a se tornarem mais capacitados para lidar com esse tipo de situação.

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