Crônica | Parêntese

Ana Marson: Avião

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Ana Marson: Avião

Eu amo viajar, mas não gosto de meios de transporte. Eu tenho medo de carro na estrada, tenho medo de avião. Do que menos tenho medo é ônibus, e sempre tem um FDP pra dizer pra mim que o ônibus pode tombar e eu ficar presa lá dentro, sabe aquela gente agourenta? O medo de carro eu resolvo indo no banco de trás, colocando os fones, ouvindo música e fechando os olhos. Tem gente que me acha de uma serenidade… Mal sabe que a cada curva em velocidade e a cada freada eu xingo mentalmente até a tataravó do motorista.

Mas o medo de avião não tem o que fazer. Eu queria fazer uma viagem pra Europa, e minha primeira pesquisa foi de navio. Só que aí o tempo de viagem ficou inviável, bem, fui de avião. Tomei dois Rivotril e fiquei a noite toda acordada naquele avião, sério mesmo. Tinha também o francês mal-educado do meu lado, acredita que ele colocou a mala de mão embaixo da poltrona da frente dele e colocou as pernas pro meu lado? Isso me ajudou a não dormir, fiquei toda torta, e como eu sou banana, não sei brigar, me impor, deixei assim. Também porque, a meu ver, brigar no avião pode fazer ele cair. Não sei de onde saiu essa relação, pergunta pro Freud.

Agora é o que eu quero falar mesmo. Eu realmente não entendo quem não se importa com avião. Como que pode ser boa coisa um negócio que os caras começam te avisando tudo o que tu tem que fazer só pra não dizer que não tentou se salvar? Sim, porque até parece que vai adiantar alguma coisa se aquele troço simplesmente cair. Se faltar ar, pega a máscara. Se cair na água, pega o assento pra flutuar. Tipo: “Pessoal, vambora, mas pode acontecer um monte de merda, olha só”.

Pior foi minha última viagem de avião, semanas atrás, em plena pandemia, as criaturas dizendo que se houvesse despressurização, era pra colocar a máscara. Mas antes de colocar a máscara de oxigênio, era pra gente tirar a máscara do corona. Sério mesmo? “Olha só, pessoal, aqui dentro vocês podem morrer, de despressurização ou de corona, certo?”. Por que não disse duma vez que tanto faz, já que tudo ia matar a gente sem ar mesmo? “Querem morrer sem ar por causa de falha no avião ou por causa do vírus?”

Acontece que, normalmente, nessa hora dos avisos, eu faço de tudo pra não ouvir. Não quero saber. Então eu fico com a música bem alta nas orelhas, eu fecho os olhos, viro pro lado, não quero ver o gestual dos comissários, não quero ouvir nada. Até um dia que me pegaram no flagra. Sabe esse aviso que eles dão hoje em dia, “pedimos que preste atenção nos procedimentos de segurança mesmo quem seja um passageiro habitual”, sabe? Foi por minha causa. Foi uma filha da mãe duma aeromoça que me pegou fazendo todo o ritual de não acompanhar as explicações. Eu vi quando ela me olhou com cara de louca. E depois ela veio até mim só pra me torturar; sério mesmo, ela pegou no meu pé. Olha o que ela fez: ela disse que eu tava na saída de emergência e perguntou se eu me sentia apta a operar em caso de necessidade. Eu respondi “Não vai precisar”. Ela insistiu, “Mas tu te sente apta?”. Eu disse “Sim, mas não vai precisar”. Ela fez cara de louca de novo.

Claro que eles fazem cara de louco, porque eles são loucos. Quem, em sã consciência, vai escolher uma profissão dessas? Piloto, copiloto, comissário, tudo ruim da cabeça. Tudo gente que gosta do perigo, gente que não vive sem adrenalina alta. Tudo gente que sorri dizendo que a gente pode ficar sem ar, cair na água, cair no mar ou mesmo na selva. Aí, depois que cair, ferrar tudo, vai ter setinhas luminosas indicando o caminho… o caminho do paraíso, só se for. Ou do inferno, dependendo de quem estiver no voo. Termina indicando onde tem os banheiros. Eles fazem de propósito nesta ordem, porque depois que despertam na gente aquela diarreia de nervoso, depois de todas as possibilidades de morrer, aí eles dizem onde é o banheiro, quem estiver se cagando já sabe aonde ir.

Não gosto. Quando o negócio começa a correr na pista eu começo a respirar fundo, só que fica muito rápida a minha respiração, não dou conta de respirar, aí acho que tô com despressurização e que por causa da minha própria despressurização as máscaras vão cair, aí eu olho pra cima rezando pra que elas não caiam, porque se caírem é sinal de que deu merda, e o negócio nem saiu do chão ainda. Quando ele sai, aí sim. Aí eu entro em pânico e oscilo entre dois pensamentos, um positivo (ele vai conseguir subir, ele foi feito pra isso, ele vai conseguir) e um negativo (se tiver que acontecer algo, que exploda, por favor, explode, por favor, não cai, explode). Uma mínima paz eu encontro quando dá aquele “plim” e apaga o aviso do cinto de segurança. Ufa. Tá tudo bem.

E quando não apaga? Que nem um dia, que o comandante disse que o tempo tava um cu, teríamos bastante turbulência, que ele faria o possível pra minimizar o desconforto, mas, né? Aí nunca apagou o aviso do cinto de segurança e eu terminei o voo chorando, com a mulher que tava do meu lado tentando me acalmar e a aeromoça me dando água. Água. Vê se pode. Ela vem e dá água pra pessoa que tá praticamente colocando o coração pela boca. Claro que não adiantou nada.

E tem o seguinte: a culpa das turbulências é toda do Paraná. Eu faço muito voo pra São Paulo, saindo de Porto Alegre ou de Floripa. Toda vez que a gente tá passando pelo Paraná é um suplício. Eu já tenho bronca do Paraná, posso nunca ter dito isso abertamente, mas pensa num lugar do qual eu tenho bronca, é esse Paraná. Que lugar que não é nada e incomoda tanto. Os caras se acham paulistas, como se fosse grandes coisas ser paulista. Nada contra paulista, eu até tenho amigos que são, abraço, beijo, trato normal, mas aí a ser referência de qualquer coisa exemplar, ah, dá licença, mano. Então não bastasse aquele Paraná não ter nada pra fazer, Curitiba ser aquela coisa fria e cinza, eles ainda pegam aquelas nuvens particulares deles e colocam EXATAMENTE na rota do meu avião, que é pra balançar bastante, dar aquelas caídas, subir de volta, tremer e eu passar vergonha chorando. Só pra isso. Essa é a diversão do Paraná, atormentar os outros. LeitE quentE quE dói o dentE. A começar que leite quente nem dói o dente, essa é a verdade. Nada de relevante nesse Paraná, só incomodação.

Mas enfim, o avião: eu preciso viajar tanto? Sim. A trabalho? Não, porque eu quero. E toda vez que eu for viajar eu vou reclamar SIM. Toda vez. E não vou, simplesmente NÃO VOU ouvir os avisos e ver aqueles gestos de o que fazer caso o avião caia. Não vou. Pode fazer a cara de louca que for. É óculos escuros, música, vira pro lado e um abraço. E toda vez que alguém me perguntar “Fez boa viagem?” – por educação – eu vou responder, como sempre, que não e vou contar em detalhes toda vez que aquela merda balançou, exatamente como sempre faço. Santos Dumont tivesse ficado de boa inventando relógio de pulso, hoje eu não tava nesse suplício; mas não, ele queria voar e voar e fazer a gente que nem asa tem voar também. Cheio de água aí, cheio de chance de viajar de navio. Cheio de terra aí, cheio de lugar pra colocar trem. Te contar, viu? Podia ter ficado sem essa, Dumont. Só acho.


Ana Marson nasceu em 1978, em Porto Alegre, É mestre em literatura brasileira pela UFRGS, viveu em São Paulo de 2008 a 2016 e atualmente mora em Florianópolis. Trabalha como revisora de textos e designer instrucional. Publicou A cobra da laranjeira – crônicas muito azedas, crônicas, 2017, pela Consultor Editorial.

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