Crônica

A cultura alagada

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A cultura alagada Foto: Autor desconhecido

Entre os inúmeros aspectos afetados pela catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul está o setor cultural, que se vê praticamente paralisado, a exemplo de muitos outros, neste momento dramático. Como dezenas de bairros ficaram ilhados em Porto Alegre – que teve ruas e avenidas alagadas, como nas outras 424 cidades do Estado inteiro –, teatros, cinemas, museus e entidades culturais fecharam as portas, pois estão inacessíveis no momento. 

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O Museu de Arte do Rio Grande do Sul, por exemplo, teve toda a sua parte térrea inundada e precisou de uma força tarefa monumental para retirar, às pressas, seu acervo que ficava na reserva técnica no andar térreo da instituição e ser levado para o primeiro e segundo andar do prédio. Pinturas, serigrafias, gravuras e fotografias estão desordenadamente dispostas lado a lado com esculturas, tapeçarias e instalações diversas, mas a salvo. Sem o ar-condicionado na temperatura adequada, mas livre da perda total para o nosso alívio. 

Vizinho do Museu, se encontra a Casa de Cultura Mario Quintana, situada na mesma região e que teve o mesmo triste destino com a parte térrea da sua bela edificação completamente alagada. Por sorte, os acervos principais encontram-se a salvo, distribuídos pelos seis andares do antigo hotel Majestic. O quarto do poeta Mario Quintana, espaço de memória com mobília, objetos e acessórios do artista está também resguardada. Mesma sorte não teve a livraria Taverna, localizada no andar térreo da Casa de Cultura. Os proprietários ainda conseguiram improvisar sobre mesas e balcões mais altos, todo o acervo de livros, mas esses móveis, feito de madeirite, não são resistentes a tantos dias debaixo da água. Espero que tenham conseguido retirar os livros de lá intactos. 

O Centro Municipal de Cultura, onde se localizam os Teatros Renascença e Álvaro Moreira, além da Biblioteca Josué Guimarães e do Atelier Livre da Prefeitura e que, no primeiro momento da enchente, serviu de ponto de recepção das vítimas resgatadas da enchente, teve que ser desmobilizado, rapidamente, pois a água alcançou o bairro onde a instituição se localiza. O palco do Teatro Renascença segue debaixo da água, apodrecendo, bem como as cadeiras da plateia, de quase quatrocentas pessoas. Uma desolação. Toda a programação prevista teve de ser cancelada e não se sabe quando a instituição abrirá as portas à comunidade novamente. Detalhe, a temporada do meu próprio espetáculo, a comédia “Sexualmente Invisível”, que retornaria a cartaz agora, no comecinho de junho, e se estenderia até o final do mês, foi suspensa, assim como várias outras.

O Teatro do Museu do Trabalho, localizado na área do Centro Histórico, próximo a Usina do Gasômetro, administrado pela atriz, diretora e produtora, Karen Radde, teve as suas instalações completamente alagadas pelas águas do Guaíba desde o início das cheias. As águas comprometeram parte da plateia, palco, camarins e certamente precisará de uma imensa força tarefa e auxílio geral e do poder público para recuperar o seu espaço de trabalho. Outro detalhe irônico, ali eu, meu marido, o ator Gabriel Guimard e minha amiga, a atriz e diretora Claudia Sachs, promovíamos uma oficina teatral, “Território do Riso”, com um trabalho de humor na cena voltado para atores profissionais e que foi, momentaneamente, cancelado e sem previsão de retorno a curto prazo. 

Soube agora, há pouco, que o imenso acervo da editora L&PM, do jornalista e editor, Ivan Pinheiro Machado, uma das mais antigas, longevas e prestigiadas editoras do Brasil, teve seu depósito, localizado no bairro Farrapos, foi totalmente inundado. O local abrigava cerca de 900 mil exemplares e toda a história da editora. Uma perda incomensurável para as letras do Rio Grande do Sul.  

Semelhante ao que aconteceu na pandemia quando a classe artística foi a primeira a se retirar de cena e a última categoria a voltar, me parece que o script deprimente retorna mais uma vez. Certamente a classe artística dependerá de um auxílio governamental para sobreviver, por meses, até que o Estado e as cidades se recomponham minimamente. Atores, diretores, músicos, compositores, cenógrafos, iluminadores, bailarinos, coreógrafos e técnicos em geral, tiveram seus trabalhados inundados também por essa calamidade. A imensa classe está paralisada e atordoada, pois os seus equipamentos e locais de trabalho foram gravemente prejudicados. 

Se não bastasse tudo isso, bares e casas noturnas também foram alagados e não voltarão a funcionar tão cedo, nem darão abrigo para músicos, cantores e artistas em geral que ali se apresentavam. Uma calamidade dessas afeta a economia criativa de todo o estado de maneira indelével e por tempo indeterminado. Que a gente saiba se unir enquanto classe artística, seriamente afetada, apelando ao poder público por um auxílio emergencial indiscutível e necessário. Afinal, a cultura é a síntese simbólica e afetiva de todo o povo gaúcho e fará muita falta nestes tempos de incerteza e dor. 


Nora Prado é bacharel em interpretação teatral pela UFRGS, atriz, professora, apresentadora e poeta gaúcha. É sócia fundadora da Cia. Megamini. Em 2017, publicou seu primeiro livro de poesias A Espessura da Vida, com ilustrações da artista visual Zoravia Bettiol. Em 2021, publicou seu segundo livro, Alma das Flores, pela editora Bestiário. 

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