Crônica

E dale viver evento histórico

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E dale viver evento histórico

A minha história se repete.

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Em março de 2020, fui passar vinte dias em Santos e começou o isolamento da pandemia de covid. Levei três meses pra poder voltar pra minha casa em Florianópolis. E pior ainda, vítima do desgoverno do inominável genocida, que conduziu milhares de brasileiros à morte.

Em 29/4/2024, cheguei a Porto Alegre pra estar no dia 30 no lançamento de um livro do qual fui uma das autoras, aproveitei pra estender uns dias com a minha família, só alegrias. No dia 2/5, saí com uma amiga pra beber na Cidade Baixa, vida normal. No dia 3, sexta-feira, quando ia embora, começaram burburinhos sobre as águas do Guaíba invadirem Porto Alegre. Antes das 9 da manhã desse dia, liguei na rodoviária pra saber se os ônibus estavam partindo, sim, estavam, e o meu era às 13 horas. Quando deu 10 da manhã, vi pela internet a rodoviária sendo inundada e, portanto, fechada. Quê?

Daí foi o que todo mundo sabe. O que ninguém sabia de imediato era a monstruosidade da coisa. No dia 4/5, sábado, já sem água em casa, fui ao supermercado comprar água, aquela coisa emergencial, achando que ficaria o fim de semana no perrengue. Enquanto escrevo este texto, já se vão 11 dias sem água e rodando a cidade feito louca pra comprar água mineral e pegar em algumas fontes água mais ou menos limpa, dia a dia, de manhã, de tarde.

Diante do horror da cidade inundada, no pior evento climático que jamais imaginei presenciar in loco, tenho que agradecer porque a casa dos meus pais não inundou, não ficamos sem energia elétrica e ora, ora, tenho dinheiro, saúde e pernas pra andar atrás de água.

Sentimentos novos são muito esquisitos.

Tem gente muito pior que eu: gente morta, sem casa, sem comer, sem beber, sem roupa. Então não posso reclamar. Mas o fato de eu estar segura não anula uma verdade indiscutível: eu, meus pais e a amiga que abrigamos aqui continuamos sendo seres humanos e, como tais, precisamos de água pra beber. Então é primeiro nós, se der, ajudo os outros. Como se sente isso? O meu empenho físico de andar por bairros e bairros atrás de água tem que ser feito pelos meus idosos, e os dias vêm sendo extremamente longos nas notícias da TV e absurdamente rápidos no supermercado, nos botecos, nos mercadinhos, nos postos de gasolina – aonde chego e tinha água, mas acabou.

O som incessante dos helicópteros indo resgatar quem está com água bem acima do pescoço, as forças humanas e mantimentos chegando do país todo, que coisa linda o que está acontecendo, lindo onde, como que sente a lindeza na tragédia? Como que o olho tem coragem de brilhar quando vê passando um monte de jipe, barco, caminhão, voluntários? Como que o coração tem coragem de se aquecer sabendo o motivo pelo qual isso tá acontecendo? E a gratidão? Ainda bem que tô aqui, ainda bem que não deu pra ir embora, assim estou na minha raiz ajudando, ô, que glória estar no olho do furacão. Ansiosa e tranquila.

O fato é que à medida que a água ia subindo no estado inteiro, a notícia foi se espalhando pelo mundo e a ajuda foi chegando também de outros países, o Rio Grande do Sul virou notícia mundial, assim como a solidariedade. A empatia, gente de deus, ela ressuscitou com tudo. (Ainda não superei a emoção de ver as crianças da Guiné Bissau curvadas no chão, com as cabeças pousadas na nossa bandeira, orando pelo nosso estado.)

A questão é que, se eu seguir só falando sério, destrambelhar da cabeça não vou, pois isso já se deu e não é de hoje, mas talvez eu morra de tristeza, e não está nos meus planos do momento, por ora só quero água potável mesmo, já que também não quero morrer desidratada ou contaminada. Então, com licença.

De fonte muito segura, soube que lá no Alegrete tem um pessoal que diz que “o mundo é essa grande porção de terra que tem em volta do Rio Grande do Sul”. Dale. E não é que acabou que os alegretenses têm razão? Não que eu duvidasse antes, mas estou vendo ao vivo a grande porção de terra que nos cerca se mexendo em prol da nossa gente.

Tenho uma amiga paulista que sempre mencionou que eu me acho demais, atribuindo isso ao gauchismo, que a gente vai pra São Paulo e leva chimarrão, que o Zaffari de lá tinha etiquetas escritas “produto gaúcho” e deixava em destaque, enfim. Volta e meia ela vinha me mostrar alguma novidade de São Paulo, tipo, um tobogã público, e imediatamente eu mostrava uma notícia mais antiga de que isso já tinha sido feito em Porto Alegre.

Ela me pediu notícias dessa catástrofe da enchente, alegando não ter mais psicológico pra acompanhar na TV, que só ficaria com minhas informações; eu disse que tava ruim demais e ia piorar, mas que eu só faria atualizações diárias se ela admitisse de uma vez por todas que somos nós o centro de tudo e os grandes pioneiros, dessa vez, os primeiros no fim do mundo. Começou de fato aqui. Vai negar?

Faço questão de que conste nos livros paulistas que o primeiro evento concreto do fim do planeta Terra se deu no Rio Grande do Sul, apesar de São Paulo vir tentando há tempos, assim como outros lugares, mas lamento, nós vencemos mais essa. Nossas façanhas servem de modelo a toda a Terra. E que façanhas, pro bem e pro mal. Se a amiga paulista admitir, prometo que vou repensar o separatismo.

Fora que somos abençoados, mas às vezes é tanta bênção pros gaúchos que deus tem que escolher, e dessa vez, ou mantinha o muro em pé pra não termos um tsunami de água doce, ou mandava mais chuva, suficiente pra derrubar o muro e coroar a bênção do nosso atual governador e prefeito, agilizando a tão almejada, por eles, queda do muro de contenção do rio Guaíba pra construir, enfiar concreto na margem do rio, um estacionamento bem lindo, bem pintado, pra centenas de carros, as vagas de deficiente aqui, as de velho ali, os combinados dos nossos governantes com as construtoras, tais porcentos pra ti, tais pra mim, sem essa bobagem de investir em tecnologia antienchente e nesse muro feio que deixa feia a cidade, já aproveita e passa a boiada, corta esse monte de árvore aí, faz um deck de madeira bem chique, mata ciliar é bobagem, a cidade quer é desenvolvimento destrutivo. Só que, dizem, deus é também a natureza, e esta, por sua vez, tá é cagando pra isso tudo. E toma água na tua cara. Na tua rua. Na tua casa.

(Hoje, metade de maio de 2024, o muro ainda está em pé.)

As redes sociais finalmente fizeram um bom papel. Conectaram as pessoas pra ajuda humanitária. Quanto mais se postava, mais gente aparecia pra ajudar. E comigo não foi diferente quando busquei ajuda pra me manter e poder ajudar. No meu desespero por água, uma senhora me passou, por uma rede social, o telefone de um homem que tinha estoque de água, mas que eu ligasse de manhã cedinho pra garantir minha reserva. Dia seguinte liguei, ninguém atendeu. Olhei no relógio, 7:58. Ah, abre às 8. Deu 8 horas em ponto, liguei de novo, me atende uma mulher com “Alô” sonolento; era um telefone residencial, não vendia água.

Comentei com a senhora que me passou o contato que o número tava incorreto, ela foi verificar a mensagem e viu que, na ânsia de ajudar, me deu o número da casa dela, e essa parte da história ficaria boa mesmo se tivesse sido ela a atender o telefone, mas infelizmente foi a irmã dela, de modo que apenas quis deixar registrado aqui o destrambelhamento da cabeça que todo mundo tá.

Fui buscar água numa amiga da minha mãe que ainda tinha, não tinha sido cortada, nem a luz, tava tudo de boa. Cheguei ao prédio dela com vários galões, um elevador tava estragado e o outro, em manutenção. Subi onze andares de escada, desci onze andares de escada carregada de água e grata. Isso eram 11 da manhã.

Seis da noite ela ligou porque tava sem água, sem luz e tavam mandando evacuar o prédio. Ela achava que não precisava sair, porque tava previsto encher SÓ ATÉ O SEGUNDO ANDAR. Eu disse pra não subestimar a catástrofe. E se precisasse sair por outro motivo? Um incêndio? Teria roupa de mergulho pros dois andares até a porta do prédio? Falei que ia buscar ela, mas furiosa porque completamente cagada de me meter em área que tava sendo evacuada.

Cheguei, o zelador não queria me deixar entrar; no escuro e naquela situação, só entrava quem tinha chave, me disse ele, e meu celular já tava sem sinal pra falar com ela e ser autorizada. Era a evacuação da Cidade Baixa. Expliquei quem era a moradora, que era importante subir, ele compreendeu. Escalei de novo os mesmos onze andares, dessa vez com a lanterna do celular, e a cada piso eu pensava em todas as merdas possíveis, a água entrando, se eu cair aqui e me machucar, se tiver um tarado escondido, minha respiração ecoava, o prédio terrivelmente silencioso.

A amiga, quando me viu, chorou e iniciou umas rodopiadas pela casa falando sobre a calça tal, a calça, tinha vela acesa, eu vi que o atordoamento era sério e abracei ela, pensei nas pessoas nos telhados, nas que não conseguiram nem ir pro telhado e fingi manter a calma, já louca pra largar dela e vazar, minha cabeça tava “anda, porra, antes que a gente se foda”. Mas me firmei, falei que agora ia ficar tudo bem, a casa não ia inundar, porém a gente precisava se organizar.

Comecei a listar o que me parecia essencial além da vida: comidas do freezer, documentos, roupa quente, escova de dente, “devagar, mas vai pontualmente nas coisas que tô falando”, e assim foi. Apaguei a vela, achei a chave que ela tinha perdido em cima da mesa na cara dela, conferi janelas. A meu ver, modéstia à parte, fui muito, mas MUITO melhor do que o Pablo Marçal acalmando o piloto do helicóptero em pane.

Desci de novo carregando mala e água, do que se conclui que, entre subidas e descidas, completei o total de 44 andares, se não me falham os cálculos, com braços, pernas e coração tremendo. (Melhor falar da escada, porque me dói lembrar a cena que presenciei, isso que era só uma pessoa amedrontada e deixando tudo pra trás no escuro. Imagina uma cidade inteira, no escuro e debaixo d’água. Agora imagina mais de 400 cidades.)

Nos dias iniciais o prefeito apelou à população que quem pudesse sair de Porto Alegre que saísse. Achei um absurdo e fiz um excelente comentário: “Ele seria ótimo pra governar a Faixa de Gaza, é só chegar lá e dizer salve-se quem puder”. O pessoal começou a sair da cidade, metade das pessoas que eu conheço foi pro litoral, e todas se sentindo culpadas, como que devendo ficar pra ajudar. Como dizia minha vó, ajuda muito quem não atrapalha, então, obrigada a quem se retirou; quanto menos gente, melhor. Menos luta por água, por comida, menos trânsito atrapalhando os salvamentos, menos gente usando combustível.

Neste momento, terei a pachorra de dizer que, querendo ou não, também estou dependendo de parentes e amigos. Sim, é a casa dos meus pais. Mas é a casa deles, não a minha, quero dizer, aqui não tenho meu gato nem minhas coisas. Lembra que novos sentimentos são estranhos? Parece que não tenho o direito de sentir nada, porque tenho casa e luz. E comprei um blusão e uma calça quente. O óbvio seria pedir roupas emprestadas a alguma amiga, mas elas estão doando o máximo que podem pra quem perdeu tudo, o que não me dá o direito. A água, quando não consigo comprar, tem uma amiga que traz, pois alguns abrigos estão dando um “pagamento” em água pros voluntários. Eu aceito, mas parece que não tenho o direito. Mas eu tenho. 

Eu sei, eu sei: se moro em Florianópolis, por que não vou embora?

Primeiro, porque jamais deixaria meus pais de 80 anos terem que catar água pro banheiro nas fontes da cidade e sair atrás de água mineral pra beber.

Segundo, eu andava mesmo muito bestinha, minha maior reclamação era dia frio que não me permitia entrar no mar, e agora minha noção de problema foi atualizada com sucesso (aproveita pra te melhorar um pouquinho também, sempre dá).

Terceiro, e esse foi um brinde, presenciar o espetáculo que é nosso povo, ou a maioria dele, unido (fora os negacionistas), não medindo esforços pra salvar vidas, e ajudar como posso, com (pouco) dinheiro, quatro cachecóis e quatro pares de meia, foi o que deu pra catar aqui, pois não nos falta nada, mas também não sobra, apesar da nossa cara de ricos. (Eu, pelo menos, engano bem; principalmente quando me maquio, ninguém diz que muito já caguei em banheiro de madeira fora da casa em noite fria da serra gaúcha.) (Falei cara de ricos, não atitudes ou vocabulário.)

Quarto e não menos importante, tenho que renovar o estoque de erva-mate, porque pensa numas ervas ruins que se vende em Florianópolis, e ainda não deu espaço na mochila e nas mãos pra carregar a preciosa, então não posso ir.

Aliás, quando for embora, preciso levar na mochila a bandeirinha do Rio Grande do Sul que decora meu quarto aqui de Porto Alegre, a qual ganhei de uma amiga quando fui morar em são Paulo, na despedida, e levei pra lá e depois trouxe de volta. É que vou botar ela na minha sala em Floripa pra todos os dias lembrar o que aconteceu e principalmente quem somos SIM (menos os negacionistas): fortes, resilientes, uma cavalaria da sobrevivência. É nóis, cavalo Caramelo.


Ana Marson nasceu em 1978, em Porto Alegre. É mestre em literatura brasileira pela UFRGS, viveu em São Paulo de 2008 a 2016. Trabalha como revisora de textos e designer instrucional. Publicou A cobra da laranjeira – crônicas muito azedas (Consultor Editorial, 2017).

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