Crônica

Vai ficar tudo bem! Vai ficar tudo bem?

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Vai ficar tudo bem! Vai ficar tudo bem? Hospital Mãe de Deus. Foto: Fabio Brun.

[05/05, 08:59] Marta: Angelo acabou de falecer . Até nisso ele organizou tudo: não precisaremos subir em um caminhão do exército e sermos transferidos sabe lá pra onde. Logo ficarei sem bateria.  Quando der, dou notícias 

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Diferente da mensagem rápida de WhatsApp enviada para o grupo da família, o processo de finalização de vida do meu pai, 94 anos, internado pela última vez no hospital Mãe de Deus no dia 30 de abril, foi de paz e serenidade. 

Neste mesmo dia, apesar do alerta vermelho emitido pelo Inmet no dia anterior e dos registros das primeiras mortes, eu – e imagino que grande parte dos moradores de Porto Alegre – ainda operava no modo indiferença sobre o que estava acontecendo. 

[02/05, 09:04] Marta: Oie. Suspendi a cuidadora. Lá em casa já tá sem luz. Vou ficar aqui pelo hospital mesmo. Durmo mal, mas tem comida e banho quente. 

A mensagem, que recebeu como resposta comentários e emojis dos mais diversos, ainda brincava com tudo isso. Imersa no universo da rotina hospitalar e com os cuidados com o pai, o aumento do número de deslizamentos, inundações e pessoas desabrigadas e a notícia do Lago Guaíba prestes a transbordar ainda não tinham me tocado. 

[03/05, 11:03] Marta: Pai entrou em sedação paliativa

Por mais que essa conversa de oferecer pro pai uma abordagem paliativa já estivesse em curso há algum tempo entre a gente – familiares e profissionais da saúde – o momento da decisão não foi tão fácil. Pra mim, tudo o que sobrou nesta hora foi chorar.

Sem poder acessar o mundo lá fora, o dia se tornou uma intensa conversa pelo WhatsApp. Precisava mais do que nunca compartilhar a narrativa das minhas emoções e sentir o toque da minha rede amorosa. 

Assim como o Guaíba, que neste dia chegou em diversos bairros de Porto Alegre, a notícia sobre o estado do pai se espalhou rapidamente. Até que, entre muitas conversas, chega o breve texto de uma amiga:

“Vai ficar tudo bem?…opa, errei o acento. Vai ficar tudo bem!”

Considero que me empenho para ser uma pessoa exclamativa diante do cotidiano da vida, mas nesse momento, onde a experiência de acompanhar a morte do meu pai pautava os meus próximos dias, imaginei que a interrogação combinava mais: vai ficar tudo bem?

[04/05, 08:07] Marta: Entrada principal do hospital alagada. Entradas e saídas somente pela lateral, com muita restrição – benditas galochas que eu trouxe. Não vou sair mais, pq não sei se depois consigo entrar . Segue tudo sem Internet e sem sistema de informação interna no hospital. Não sei se aqui estão usando algum “modo econômico” de energia, mas meu celular tá lento pra carregar a bateria.  Vou economizar. Darei notícias de vez em quando.

Foi preciso a água bater no joelho para eu tirar os olhos dos monitores, equipos e acessos do pai e prestar atenção na tragédia climática que caiu e ainda desaba sobre nossas cabeças, transborda e nos afoga em todo o Rio Grande do Sul.

O mundo começou a ficar mais estranho. A eminência da morte do pai, da cidade de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, tudo ao mesmo tempo, confundiu a minha estratégia interna de ordenar das emoções. 

[04/05, 13:40] Marta: Seguimos sem água. Acabou o fornecimento de refeições para os familiares . Consegui sair, com autorização pra voltar. Vou achar algum mercadinho e comprar o que tiver de água e comida para os próximos dias. 

[04/05, 14:19] Marta: Tudo certo. Já voltei. Prateleiras praticamente vazias. Água e pão não existem mais. Mas garanti maçã, tomate, pepino, queijo, bolachas e suco. Comprei também pra senhorinha do quarto ao lado – tá sozinha… ninguém da família conseguiu chegar.

[04/05, 14:22] Marta:  Que viagem! Tem gente vendendo galochas aqui na esquina. 

Ilhados no hospital, logo a turma de familiares e cuidadores foi se reconhecendo nas idas e vindas pelos corredores e escadas. Ao longo de todo dia e noite acompanhamos pelas janelas envidraçadas do sétimo andar o início das remoções de pacientes, já com a ajuda de caminhões do exército. 

“Eu tô só observando a água subir … de olho na marquinha vermelha daquele contêiner ali. Consegue ver?”

Não, eu não tinha visto até então a tal marquinha do contêiner que estava na avenida, bem em frente ao hospital. Dali em diante, não consegui mais tirar o olho dele. Logo a marquinha desapareceu, o contêiner flutuou e saiu a passear pela rua lateral da José de Alencar. 

[05/05, 06:06] Marta: Estamos sem luz desde a 1h da madrugada. Tudo escuro, não tem mais energia elétrica pra nada Tem que achar leitos em outros locais pra remover. Estão tirando todo mundo do hospital.  Um caos. Iniciaram pela CTI. Ainda não sei pra onde vamos. Parece que nosso andar será um dos últimos a sair. Alguns já tiveram alta antecipada. Eu vou desligar o celular novamente, porque estou com pouquíssima bateria. Dou notícias quando souber algo .

A madrugada foi de escuro e silêncio. Nos corredores, os poucos que circulavam já estavam cansados de conversar. No quarto, a respiração cada hora mais lenta do pai. O silêncio dele não me causava estranhamento, pois o pai, sempre tranquilo e de bem com a vida, nunca foi de muitas palavras mesmo. Entre rezas e canções que entoei ao longo da madrugada, a memória de diversas cenas familiares veio me abraçar e lembrar que eu não estava sozinha. 

E foi assim que ele me acompanhou até o final. Com a respiração cada vez mais suave que anunciava a eminência da morte, sua paciência e tranquilidade me convidaram a arriscar gastar a pouca bateria do celular para escutarmos juntos pela última vez um dos seus sambas preferidos: “Não posso ficar nem mais um minuto com você…”

Engenheiro civil e professor universitário de estatística, ele sempre foi muito bom nos cálculos. Não podia se esperar algo diferente para o planejamento deste final de vida, calculado exatamente para poucos minutos antes da remoção do andar em que estávamos. 

Saímos do hospital separados. Eu, na partilha com outras pessoas da estranha experiência de sair do hospital (por alta ou transferência para outro local) pela porta de um caminhão do exército que virou uma silenciosa sala de espera até o posto de combustível na avenida José de Alencar, onde nos aguardavam para ajudar a descer em macas, cadeira de rodas ou passos inseguros.

[05/05, 12:29] Marta: Eu tô saindo do hospital agora A Tina tá me esperando lá no posto. O corpo ainda está lá. Uma grande logística pra retirada, pois querem evitar a imprensa “que está seca por uma notícia de morte”, como disse a funcionária. Acho que vamos agendar a cerimônia de despedida para amanhã de tarde. Carmen ainda está tentando chegar de SP. Vai descer em Floripa e tentar seguir pela estrada. 

Pai, hoje faz uma semana desta despedida. Tem momentos que parece já ter passado muito tempo. Em outros, tenho a sensação que daqui a pouco eu vou dar uma chegadinha ali no teu residencial pra te encontrar. Agora, o que mais lembro é que toda vez que te perguntavam “como vai?”, tua resposta era sempre a mesma: “tá tudo bem!”. 

Promete!?!?!


Marta Orofino é terapeuta ocupacional, pesquisadora e escritora. Envio este texto para a Parêntese no dia 12/05/2024.  

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