Ensaio | Parêntese

André Boucinhas: 1968 e hoje

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André Boucinhas: 1968 e hoje André Boucinhas Estou anunciando hoje a minha candidatura à presidência dos Estados Unidos. Vou disputar porque estou convencido de que esse país está em uma rota perigosa. Eu vi a privação feia e indesculpável, que faz com que crianças passem fome no Mississipi, cidadãos negros se revoltem em Watts, jovens índios cometam suicídio em suas reservas, por terem perdido todas as esperanças e famílias orgulhosas e fisicamente capazes esperarem o fim chegar na ociosidade vazia do leste do Kentucky. Com esse discurso, Robert Kennedy abriu sua campanha para disputar o cargo mais alto da República norte-americana em 1968. Sua fala chama a atenção para questões que, alguns anos antes, eram completamente ignoradas pela elite política: populações indígenas, insatisfação das comunidades negras, fome das classes populares. Para muitos, a candidatura de “Bobby” representava as causas que vinham efervescendo nos últimos anos e que, em 1968, estavam tomando as ruas. A luta pelos direitos dos negros, das mulheres, dos homossexuais e dos pobres vinha ganhando força sobretudo entre jovens universitários e, apesar de esses movimentos nem sempre estarem afinados, se uniam no maior de todos os apelos daquele ano nos Estados Unidos: o fim da Guerra do Vietnã. Também nesse ponto o candidato Robert Kennedy se mostrava de acordo com as novas vozes, pois garantiu que traria de volta as tropas norte-americanas imediatamente. Se a candidatura do irmão mais novo do ex-presidente John Kennedy podia ser percebida, como o foi por John Lewis (um ativista negro defensor dos direitos civis e auxiliar na campanha de Bobby), como “a concretização das esperanças e sonhos de muitas pessoas”, seu assassinato – poucos meses após o de Martin Luther King Jr – também pode ser compreendido como um sinal do que estava por vir. Para Daniel Ellsberg, analista militar e crítico da Guerra do Vietnã nos anos 1960, aquela morte “foi uma forma de fazer muita gente se sentir sem forças… Começou a parecer que não havia jeito de mudar o país”1. Os sinais não pararam por aí. Em uma convenção do Partido Democrata logo após o assassinato de Kennedy, milhares de pessoas se reuniram em volta do hotel em que acontecia o evento para pressionar os candidatos a manterem a política pacifista. O que se viu – e se viu literalmente, pois estava sendo transmitido ao vivo pela televisão – foi uma ação brutal da polícia de Chicago dispersando a multidão com cacetetes e bombas de gás lacrimogêneo. E os Estados Unidos não estavam sozinhos nessa reação à nova esquerda. O ano de 1968 foi marcado por repressões violentas a protestos de jovens em vários outros países como Tchecoslováquia, França, China e Brasil, para citar apenas alguns. Como observou o historiador Jeremi Suri, “no final de 1968, a política das ruas havia mudado a política dos governos, mas não da forma que os protestantes desejavam”2. No entanto, o que marcou de forma decisiva uma nova fase para a sociedade norte-americana foi a vitória das eleições presidenciais pelo candidato republicano Richard Nixon. Em oposição a […]

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André Boucinhas Estou anunciando hoje a minha candidatura à presidência dos Estados Unidos. Vou disputar porque estou convencido de que esse país está em uma rota perigosa. Eu vi a privação feia e indesculpável, que faz com que crianças passem fome no Mississipi, cidadãos negros se revoltem em Watts, jovens índios cometam suicídio em suas reservas, por terem perdido todas as esperanças e famílias orgulhosas e fisicamente capazes esperarem o fim chegar na ociosidade vazia do leste do Kentucky. Com esse discurso, Robert Kennedy abriu sua campanha para disputar o cargo mais alto da República norte-americana em 1968. Sua fala chama a atenção para questões que, alguns anos antes, eram completamente ignoradas pela elite política: populações indígenas, insatisfação das comunidades negras, fome das classes populares. Para muitos, a candidatura de “Bobby” representava as causas que vinham efervescendo nos últimos anos e que, em 1968, estavam tomando as ruas. A luta pelos direitos dos negros, das mulheres, dos homossexuais e dos pobres vinha ganhando força sobretudo entre jovens universitários e, apesar de esses movimentos nem sempre estarem afinados, se uniam no maior de todos os apelos daquele ano nos Estados Unidos: o fim da Guerra do Vietnã. Também nesse ponto o candidato Robert Kennedy se mostrava de acordo com as novas vozes, pois garantiu que traria de volta as tropas norte-americanas imediatamente. Se a candidatura do irmão mais novo do ex-presidente John Kennedy podia ser percebida, como o foi por John Lewis (um ativista negro defensor dos direitos civis e auxiliar na campanha de Bobby), como “a concretização das esperanças e sonhos de muitas pessoas”, seu assassinato – poucos meses após o de Martin Luther King Jr – também pode ser compreendido como um sinal do que estava por vir. Para Daniel Ellsberg, analista militar e crítico da Guerra do Vietnã nos anos 1960, aquela morte “foi uma forma de fazer muita gente se sentir sem forças… Começou a parecer que não havia jeito de mudar o país”1. Os sinais não pararam por aí. Em uma convenção do Partido Democrata logo após o assassinato de Kennedy, milhares de pessoas se reuniram em volta do hotel em que acontecia o evento para pressionar os candidatos a manterem a política pacifista. O que se viu – e se viu literalmente, pois estava sendo transmitido ao vivo pela televisão – foi uma ação brutal da polícia de Chicago dispersando a multidão com cacetetes e bombas de gás lacrimogêneo. E os Estados Unidos não estavam sozinhos nessa reação à nova esquerda. O ano de 1968 foi marcado por repressões violentas a protestos de jovens em vários outros países como Tchecoslováquia, França, China e Brasil, para citar apenas alguns. Como observou o historiador Jeremi Suri, “no final de 1968, a política das ruas havia mudado a política dos governos, mas não da forma que os protestantes desejavam”2. No entanto, o que marcou de forma decisiva uma nova fase para a sociedade norte-americana foi a vitória das eleições presidenciais pelo candidato republicano Richard Nixon. Em oposição a […]

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