Ensaio | Parêntese

Antonio Carlos Secchin: João Cabral e a Arte da Dedicatória

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Antonio Carlos Secchin: João Cabral e a Arte da Dedicatória Mais do que simples protocolos de cordialidade, as dedicatórias de livros podem revelar relações de poder, ou ainda desferir dardos acolchoados sob a aparente maciez de um “abraço amigo”. Cumpre, desde logo, distinguir as dedicatórias tipográficas – que, de algum modo, intentam tornar pública uma relação particular, eternizando-a na página impressa – das dedicatórias manuscritas, direcionadas, a princípio, ao âmbito privado, mas que muitas vezes o extrapolam, exibidas em bibliotecas públicas ou nas prateleiras dos sebos. João Cabral de Melo Neto era considerado parcimonioso (para dizer pouco) em suas manifestações sobre a literatura brasileira. Ao contrário dos entusiásticos elogios a autores de língua inglesa e espanhola, o que se constata é o caráter minguado da parte que nos cabe nesse latifúndio das letras preferenciais do afeto cabralino. Vários escritores (Murilo Mendes, Rubem Braga, Clarice Lispector) tornaram-se personagens de poemas de cunho anedótico, em que a dimensão propriamente estética de suas obras não era sequer tangenciada. Por outro lado, no campo específico das dedicatórias, o poeta foi bastante pródigo: abarcando poetas e ficcionistas do país, elas estão presentes em nada menos do que catorze de seus vinte livros. O mais usual (com nove incidências) é a homenagem sem plumas, mediante a despojada referência de um nome, isento de qualquer qualificativo: são os casos de Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Vinícius de Morais, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, José Lins do Rego, Lêdo Ivo. Luís Jardim e Marly de Oliveira.  Fora desse modelo a palo seco e majoritário, contam-se as quatro outras ocorrências: (de novo!) “A Carlos Drummond de Andrade, meu amigo”; “A Joaquim Cardozo, poeta do Capibaribe”; “A Manuel Bandeira, esta antilira para seus oitent´anos”; “A Augusto de Campos” ( acompanhada de poema-homenagem).  Os dois primeiros livros poemas cabralinos, Pedra do sono, de 1942 e O engenheiro, de 1945, são dedicados ao mesmo poeta – Drummond –, com o significativo acréscimo do aposto “meu amigo” no segundo. Ora, a declaração de familiaridade com o grande e já consagrado autor mineiro não deixa de se constituir num gesto de autoafirmação por parte do jovem e ainda quase desconhecido autor pernambucano. No segundo exemplo de dedicatória com adendos, a de Joaquim Cardozo, a ênfase incide na realidade geográfica: Cardozo, como Cabral, sempre foi sensível às marcas de sua origem nordestina. No terceiro, a gentileza  não deixa de trazer embutida uma farpa da ironia: Cabral oferta ao primo Manuel Bandeira uma “antilira”, algo incômoda ao homenageado, tido como uma das maiores vozes “líricas” do Brasil – a porção “lírica”, para Cabral, corresponde ao que  de mais detestável e confessional um texto pode conter.  Finalmente, em Agrestes (1985), há um poema-dedicatória a Augusto de Campos, cuja obra João Cabral situa num patamar de radicalidade superior ao de sua própria produção.  Das dedicatórias que nada acrescentam aos nomes homenageados, a maioria se endereça a poetas, com os quais, porém, Cabral não exibe maior afinidade, exceção feita a Murilo Mendes, cuja linhagem surrealista reverberou no livro cabralino de 1942 e (parcialmente) no de 1945. Alguns desses autores, inclusive, situam-se em polo […]

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Mais do que simples protocolos de cordialidade, as dedicatórias de livros podem revelar relações de poder, ou ainda desferir dardos acolchoados sob a aparente maciez de um “abraço amigo”. Cumpre, desde logo, distinguir as dedicatórias tipográficas – que, de algum modo, intentam tornar pública uma relação particular, eternizando-a na página impressa – das dedicatórias manuscritas, direcionadas, a princípio, ao âmbito privado, mas que muitas vezes o extrapolam, exibidas em bibliotecas públicas ou nas prateleiras dos sebos. João Cabral de Melo Neto era considerado parcimonioso (para dizer pouco) em suas manifestações sobre a literatura brasileira. Ao contrário dos entusiásticos elogios a autores de língua inglesa e espanhola, o que se constata é o caráter minguado da parte que nos cabe nesse latifúndio das letras preferenciais do afeto cabralino. Vários escritores (Murilo Mendes, Rubem Braga, Clarice Lispector) tornaram-se personagens de poemas de cunho anedótico, em que a dimensão propriamente estética de suas obras não era sequer tangenciada. Por outro lado, no campo específico das dedicatórias, o poeta foi bastante pródigo: abarcando poetas e ficcionistas do país, elas estão presentes em nada menos do que catorze de seus vinte livros. O mais usual (com nove incidências) é a homenagem sem plumas, mediante a despojada referência de um nome, isento de qualquer qualificativo: são os casos de Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Vinícius de Morais, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, José Lins do Rego, Lêdo Ivo. Luís Jardim e Marly de Oliveira.  Fora desse modelo a palo seco e majoritário, contam-se as quatro outras ocorrências: (de novo!) “A Carlos Drummond de Andrade, meu amigo”; “A Joaquim Cardozo, poeta do Capibaribe”; “A Manuel Bandeira, esta antilira para seus oitent´anos”; “A Augusto de Campos” ( acompanhada de poema-homenagem).  Os dois primeiros livros poemas cabralinos, Pedra do sono, de 1942 e O engenheiro, de 1945, são dedicados ao mesmo poeta – Drummond –, com o significativo acréscimo do aposto “meu amigo” no segundo. Ora, a declaração de familiaridade com o grande e já consagrado autor mineiro não deixa de se constituir num gesto de autoafirmação por parte do jovem e ainda quase desconhecido autor pernambucano. No segundo exemplo de dedicatória com adendos, a de Joaquim Cardozo, a ênfase incide na realidade geográfica: Cardozo, como Cabral, sempre foi sensível às marcas de sua origem nordestina. No terceiro, a gentileza  não deixa de trazer embutida uma farpa da ironia: Cabral oferta ao primo Manuel Bandeira uma “antilira”, algo incômoda ao homenageado, tido como uma das maiores vozes “líricas” do Brasil – a porção “lírica”, para Cabral, corresponde ao que  de mais detestável e confessional um texto pode conter.  Finalmente, em Agrestes (1985), há um poema-dedicatória a Augusto de Campos, cuja obra João Cabral situa num patamar de radicalidade superior ao de sua própria produção.  Das dedicatórias que nada acrescentam aos nomes homenageados, a maioria se endereça a poetas, com os quais, porém, Cabral não exibe maior afinidade, exceção feita a Murilo Mendes, cuja linhagem surrealista reverberou no livro cabralino de 1942 e (parcialmente) no de 1945. Alguns desses autores, inclusive, situam-se em polo […]

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