Crônica | Parêntese

Víctor Lemus: Bola dividida no Centro Histórico da Cidade do México

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Víctor Lemus: Bola dividida no Centro Histórico da Cidade do México Tomada pela pressa natalina, ignorante do seu passado, a rua Madero, que começa em Eje Central e desemboca no Zócalo, ou vice-versa, é hoje um dinâmico passeio de pedestres cheio de comércios abertos até desoras. Distantes são os tempos em que, a começo dos 70, era possível ler em alguma parede do país: “Hoy no trabajamos porque vamos a ver a Pelé.” Para os que éramos garotos naquela época, duas particularidades se combinavam para que víssemos o Brasil como o compêndio de nossas aspirações: precedido pelo slogan publicitário cunhado por Stefan Zweig, que o apresentava como a nação do futuro, o gigante da América era para nós o território da abundância em que as sete belas artes da antiguidade haviam-se tornado oito por causa do futebol. Enquanto os integrantes do Escrete de Ouro transformavam a canarinho em um fraque resistente à sujeira, o uniforme de “el tri” era tratado como o macacão de um esporte que parecia consistir em dar trombadas e chutar a bola com a canela. Era assim que imaginávamos O Fim da História: um futuro de desenvolvimento social e bom futebol. Como todos os que chegam na hora do resumo da partida, os que ingressávamos na adolescência nos anos 70 em um México que havia concretizado as atrocidades reveladas no filme Roma (2018), de Alfonso Cuarón, e que nos oitenta iriamos cantarolar com entusiasmo “A pesar de usted”, “Construcción” ou “Querido amigo” na versão castelhana de Daniel Viglietti, tentávamos em vão ajustar a imagem desse senhor de costeletas grandes e camiseta verde que defendia o Cosmos de Nova Iorque, com a do monstro que na Copa do Mundo tinha desperdiçado o que seria um gol insólito, só pelo prazer de exercer um dos principais atributos das majestades omnímodas: o de conceder arbitrariamente o indulto. Recusando a banalidade de mais um gol de antologia, Pelé ratificou seu reinado com um ato de desdém: na jogada mais famosa dessa Copa (que rendeu o excelente romance de Sérgio Rodrigues, O drible, 2013, Companhia das Letras), teve comiseração do mítico goleiro uruguaio Ladislao Mazurkiewicz, que ficou ajoelhado em forma de cruz, e do excepcional Atilio Ancheta (ambos declarados os melhores em suas respectivas posições no certâmen), que ainda arriscou uma pirueta inútil junto ao poste esquerdo só para figurar na imortal estampa. Caminhando nesta gélida manhã de 2019, lembro que em “El Sur” (1944), Jorge Luis Borges enfatiza que “A la realidad le gustan las simetrías y los leves anacronismos.” Duvido, porém, que as verdades que expressa a poesia aconteçam sempre na caprichosa realidade. Penso no Brasil, penso na minha casa no Rio, e no país que a estas horas se dispõe com impaciência a assistir o Flamengo buscar mais um título mundial, acrescentando, com isso, mais uma fratura a seu já conturbado presente; neste caso, os que se dividem em favoráveis ou contrários em uma escolha que dificilmente admite a indiferença. Aqui é quase meio-dia e o apito inicial se aproxima. Nada há que lembre o cartaz operário dos 70. […]

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Tomada pela pressa natalina, ignorante do seu passado, a rua Madero, que começa em Eje Central e desemboca no Zócalo, ou vice-versa, é hoje um dinâmico passeio de pedestres cheio de comércios abertos até desoras. Distantes são os tempos em que, a começo dos 70, era possível ler em alguma parede do país: “Hoy no trabajamos porque vamos a ver a Pelé.” Para os que éramos garotos naquela época, duas particularidades se combinavam para que víssemos o Brasil como o compêndio de nossas aspirações: precedido pelo slogan publicitário cunhado por Stefan Zweig, que o apresentava como a nação do futuro, o gigante da América era para nós o território da abundância em que as sete belas artes da antiguidade haviam-se tornado oito por causa do futebol. Enquanto os integrantes do Escrete de Ouro transformavam a canarinho em um fraque resistente à sujeira, o uniforme de “el tri” era tratado como o macacão de um esporte que parecia consistir em dar trombadas e chutar a bola com a canela. Era assim que imaginávamos O Fim da História: um futuro de desenvolvimento social e bom futebol. Como todos os que chegam na hora do resumo da partida, os que ingressávamos na adolescência nos anos 70 em um México que havia concretizado as atrocidades reveladas no filme Roma (2018), de Alfonso Cuarón, e que nos oitenta iriamos cantarolar com entusiasmo “A pesar de usted”, “Construcción” ou “Querido amigo” na versão castelhana de Daniel Viglietti, tentávamos em vão ajustar a imagem desse senhor de costeletas grandes e camiseta verde que defendia o Cosmos de Nova Iorque, com a do monstro que na Copa do Mundo tinha desperdiçado o que seria um gol insólito, só pelo prazer de exercer um dos principais atributos das majestades omnímodas: o de conceder arbitrariamente o indulto. Recusando a banalidade de mais um gol de antologia, Pelé ratificou seu reinado com um ato de desdém: na jogada mais famosa dessa Copa (que rendeu o excelente romance de Sérgio Rodrigues, O drible, 2013, Companhia das Letras), teve comiseração do mítico goleiro uruguaio Ladislao Mazurkiewicz, que ficou ajoelhado em forma de cruz, e do excepcional Atilio Ancheta (ambos declarados os melhores em suas respectivas posições no certâmen), que ainda arriscou uma pirueta inútil junto ao poste esquerdo só para figurar na imortal estampa. Caminhando nesta gélida manhã de 2019, lembro que em “El Sur” (1944), Jorge Luis Borges enfatiza que “A la realidad le gustan las simetrías y los leves anacronismos.” Duvido, porém, que as verdades que expressa a poesia aconteçam sempre na caprichosa realidade. Penso no Brasil, penso na minha casa no Rio, e no país que a estas horas se dispõe com impaciência a assistir o Flamengo buscar mais um título mundial, acrescentando, com isso, mais uma fratura a seu já conturbado presente; neste caso, os que se dividem em favoráveis ou contrários em uma escolha que dificilmente admite a indiferença. Aqui é quase meio-dia e o apito inicial se aproxima. Nada há que lembre o cartaz operário dos 70. […]

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