Ensaio | Parêntese

Carlos Gerbase e Luís Augusto Fischer: Emendas e remendos

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Carlos Gerbase e Luís Augusto Fischer: Emendas e remendos Em memória de Aníbal Damasceno Ferreira Aqui vão algumas emendas inventadas para a Constituição Imaginária da República da Arte, em tempos de extrema correção política, que algumas vezes não passa de patrulha ideológica.  O motivo imediato da formulação foi uma conversa entre os dois signatários, a propósito da publicação, pelo Gerbase, de um site contendo seus textos desde a adolescência. A sensação desconfortável é que havia ali passagens que o maduro adulto Gerbase não escreveria mais.  O que fazer? Seria o caso de censurar-se? De fazer uma edição revista conforme as convicções atuais? Ou seria mais correto divulgar tudo?  Sim, evidentemente somos a favor da correção política para combater, por exemplo, o humor que explora as fragilidades dos de baixo, dos oprimidos. Mas não somos a favor de, por exemplo, deixar de publicar os textos de Monteiro Lobato, que é claramente racista em passagens de sua obra: nossa posição é apostar no combate crítico aos preconceitos, sabendo porém que toda obra de arte paga o preço de ser condicionada historicamente. Toda e qualquer obra de arte, mesmo aquela concebida como a mais pura e dedicada à correção política vigente em seu tempo. A Bíblia está cheia de relatos de coisas hoje condenáveis, Shakespeare é falocêntrico, Cervantes rebaixa as mulheres, Machado de Assis praticamente escondeu as mazelas da escravidão brasileira, Clarice Lispector é uma ausente em matéria de engajamento político, Nelson Rodrigues é um machista empedernido. Mas nenhuma dessas obras pode ser esquecida, porque a força de cada uma delas tem a ver com méritos de outra ordem, que o tempo foi consolidando mediante as sucessivas gerações.  Assim, que venham ao centro do palco todas as vozes, especialmente as que nunca tiveram oportunidade de se expressar! Por tudo isso, por esse conjunto complexo e tenso de reflexões que aqui mencionamos muito brevemente, é que pensamos em postular as emendas abaixo, como itens a serem considerados no julgamento da arte. I  Emenda Aníbal Damasceno Ferreira, ou Emenda Magríssimos  – Mesmo os magros, que se consideram extremamente modernos, estão ameaçados pelos magríssimos, que são mais modernos ainda. Os magríssimos sempre vêm. E, depois deles, quem sabe os magricíssimos. Ou os magríssimos transformam-se em novos magros, que serão afrontados pelos novos magríssimos. * Explicando para os mais jovens: “magro” era uma gíria dos anos 70 para designar os jovens, os adolescentes. E o Aníbal, da geração anterior, via os jovens setentistas irem, como sempre fazem os jovens, com uma descabida sede ao pote, achando que estavam inventando o mundo. Aí o Aníbal saiu com essa: agora são os magros, mas daqui a pouco vão aparecer os magríssimos, quer dizer, os neomagros, os mais jovens.  Esta emenda significa humildade: a gente acha que agora o que se sabe é o máximo dos máximos; mas daqui a pouco outro patamar vai se impor como novidade máxima. Então é bom ter autocrítica: o que sabemos hoje é muito, mas é apenas o que sabemos hoje. Especificamente, essa emenda é uma vacina, um habeas-corpus preventivo, contra a ilusão […]

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Em memória de Aníbal Damasceno Ferreira Aqui vão algumas emendas inventadas para a Constituição Imaginária da República da Arte, em tempos de extrema correção política, que algumas vezes não passa de patrulha ideológica.  O motivo imediato da formulação foi uma conversa entre os dois signatários, a propósito da publicação, pelo Gerbase, de um site contendo seus textos desde a adolescência. A sensação desconfortável é que havia ali passagens que o maduro adulto Gerbase não escreveria mais.  O que fazer? Seria o caso de censurar-se? De fazer uma edição revista conforme as convicções atuais? Ou seria mais correto divulgar tudo?  Sim, evidentemente somos a favor da correção política para combater, por exemplo, o humor que explora as fragilidades dos de baixo, dos oprimidos. Mas não somos a favor de, por exemplo, deixar de publicar os textos de Monteiro Lobato, que é claramente racista em passagens de sua obra: nossa posição é apostar no combate crítico aos preconceitos, sabendo porém que toda obra de arte paga o preço de ser condicionada historicamente. Toda e qualquer obra de arte, mesmo aquela concebida como a mais pura e dedicada à correção política vigente em seu tempo. A Bíblia está cheia de relatos de coisas hoje condenáveis, Shakespeare é falocêntrico, Cervantes rebaixa as mulheres, Machado de Assis praticamente escondeu as mazelas da escravidão brasileira, Clarice Lispector é uma ausente em matéria de engajamento político, Nelson Rodrigues é um machista empedernido. Mas nenhuma dessas obras pode ser esquecida, porque a força de cada uma delas tem a ver com méritos de outra ordem, que o tempo foi consolidando mediante as sucessivas gerações.  Assim, que venham ao centro do palco todas as vozes, especialmente as que nunca tiveram oportunidade de se expressar! Por tudo isso, por esse conjunto complexo e tenso de reflexões que aqui mencionamos muito brevemente, é que pensamos em postular as emendas abaixo, como itens a serem considerados no julgamento da arte. I  Emenda Aníbal Damasceno Ferreira, ou Emenda Magríssimos  – Mesmo os magros, que se consideram extremamente modernos, estão ameaçados pelos magríssimos, que são mais modernos ainda. Os magríssimos sempre vêm. E, depois deles, quem sabe os magricíssimos. Ou os magríssimos transformam-se em novos magros, que serão afrontados pelos novos magríssimos. * Explicando para os mais jovens: “magro” era uma gíria dos anos 70 para designar os jovens, os adolescentes. E o Aníbal, da geração anterior, via os jovens setentistas irem, como sempre fazem os jovens, com uma descabida sede ao pote, achando que estavam inventando o mundo. Aí o Aníbal saiu com essa: agora são os magros, mas daqui a pouco vão aparecer os magríssimos, quer dizer, os neomagros, os mais jovens.  Esta emenda significa humildade: a gente acha que agora o que se sabe é o máximo dos máximos; mas daqui a pouco outro patamar vai se impor como novidade máxima. Então é bom ter autocrítica: o que sabemos hoje é muito, mas é apenas o que sabemos hoje. Especificamente, essa emenda é uma vacina, um habeas-corpus preventivo, contra a ilusão […]

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