Memórias emocionadas | Parêntese

Celso da Silva Dias: O dia em que Elis Regina morreu

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Celso da Silva Dias: O dia em que Elis Regina morreu No início da década de 1980, fizemos muitas loucuras, mas tem uma que nunca esqueci: casei-me aos 23 anos; e outra, fiz um concurso pra Polícia Técnica. Entre as coisas mais preciosas que eu trouxe na mudança, ao sair da casa dos meus pais para o meu próprio espaço, estavam os meus discos da Elis Regina. Vieram comigo, abraçados; sem menor risco de se perderem ou se extraviarem. Neles estavam em verso e melodia as coisas mais sublimes que sonhamos em nossa juventude. As verdades e as vontades de uma geração que queria voz, depois de muitos anos de silêncio forçado. O que foi feito amigo, de tudo que a gente sonhou; o que foi feito da vida, o que foi feito do amor? Elis foi a voz de muitos poetas; de um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso, de um jovem pianista apaixonado por uma tal Madalena, que a imortalizou samba genial; do pintor de um belo quadro onde dançam um bêbado e uma equilibrista; deu voz ao poeta que queria ficar em seu corpo feito tatuagem. Foi a voz dos inconformados e da imensidão do som nesse momento. Eram tempos muito difíceis, e em poucos meses de casamento, de tanto correr, trabalhando e fazendo cursinho, eu e a Marcinha estragávamos demais nossos calçados, e por conta disso, nos tornamos clientes de um simpático sapateiro, que exercia seu ofício numa salinha de poucos metros quadrados no bairro Santana. Nós o víamos diariamente enfrentando solas e saltos, pintando e renovando o couro, ressuscitando sapatos. Quando cansava de ficar embretado em seu diminuto espaço, onde passava o dia inteiro entre chinelos, botas e sandálias, ele levantava-se e se recostava na porta de entrada, cumprimentando e conversando com as pessoas do bairro que por ali passavam, feito eu, perdido em pensamentos. No primeiro salto que a Marcinha quebrou, conhecemos a sapataria do seu Ivan, e em poucos minutos de conversa ele nos disponibilizou sua biografia; suas alegrias, tristezas e uma grande decepção. Disse que gostava muito de nos ver passar sempre abraçados e sorridentes, e que a Marcinha lembrava-lhe muito sua falecida esposa, com quem se casou muito jovem, assim como nós. Mas para sua grande tristeza, antes de completarem dois anos de casados “o Papai do Céu a levou e me deixou viúvo” – disse em nossa primeira conversa. “Ela era muito parecida contigo” – não se cansava de repetir, apontando pra Marcinha. E por essa semelhança, nos tornamos importantes para ele. Nos tratava por “casal feliz”; bom dia casal feliz, bom fim de semana casal feliz. Para ele, nada será como antes.  Conforme nossa pressa, dávamos mais ou menos atenção a seu Ivan, que gostava de nos contar as peripécias de sua travessia de quase sessenta anos pelo mundo. Quando por ali passávamos, ele tirava da gaveta da memória um evento qualquer, alguma festa marcante na qual se divertiu muito com sua falecida esposa, e dela falava sem cansaço. Lembrava do cabelo, às vezes da roupa que ela estava vestindo, […]

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No início da década de 1980, fizemos muitas loucuras, mas tem uma que nunca esqueci: casei-me aos 23 anos; e outra, fiz um concurso pra Polícia Técnica. Entre as coisas mais preciosas que eu trouxe na mudança, ao sair da casa dos meus pais para o meu próprio espaço, estavam os meus discos da Elis Regina. Vieram comigo, abraçados; sem menor risco de se perderem ou se extraviarem. Neles estavam em verso e melodia as coisas mais sublimes que sonhamos em nossa juventude. As verdades e as vontades de uma geração que queria voz, depois de muitos anos de silêncio forçado. O que foi feito amigo, de tudo que a gente sonhou; o que foi feito da vida, o que foi feito do amor? Elis foi a voz de muitos poetas; de um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso, de um jovem pianista apaixonado por uma tal Madalena, que a imortalizou samba genial; do pintor de um belo quadro onde dançam um bêbado e uma equilibrista; deu voz ao poeta que queria ficar em seu corpo feito tatuagem. Foi a voz dos inconformados e da imensidão do som nesse momento. Eram tempos muito difíceis, e em poucos meses de casamento, de tanto correr, trabalhando e fazendo cursinho, eu e a Marcinha estragávamos demais nossos calçados, e por conta disso, nos tornamos clientes de um simpático sapateiro, que exercia seu ofício numa salinha de poucos metros quadrados no bairro Santana. Nós o víamos diariamente enfrentando solas e saltos, pintando e renovando o couro, ressuscitando sapatos. Quando cansava de ficar embretado em seu diminuto espaço, onde passava o dia inteiro entre chinelos, botas e sandálias, ele levantava-se e se recostava na porta de entrada, cumprimentando e conversando com as pessoas do bairro que por ali passavam, feito eu, perdido em pensamentos. No primeiro salto que a Marcinha quebrou, conhecemos a sapataria do seu Ivan, e em poucos minutos de conversa ele nos disponibilizou sua biografia; suas alegrias, tristezas e uma grande decepção. Disse que gostava muito de nos ver passar sempre abraçados e sorridentes, e que a Marcinha lembrava-lhe muito sua falecida esposa, com quem se casou muito jovem, assim como nós. Mas para sua grande tristeza, antes de completarem dois anos de casados “o Papai do Céu a levou e me deixou viúvo” – disse em nossa primeira conversa. “Ela era muito parecida contigo” – não se cansava de repetir, apontando pra Marcinha. E por essa semelhança, nos tornamos importantes para ele. Nos tratava por “casal feliz”; bom dia casal feliz, bom fim de semana casal feliz. Para ele, nada será como antes.  Conforme nossa pressa, dávamos mais ou menos atenção a seu Ivan, que gostava de nos contar as peripécias de sua travessia de quase sessenta anos pelo mundo. Quando por ali passávamos, ele tirava da gaveta da memória um evento qualquer, alguma festa marcante na qual se divertiu muito com sua falecida esposa, e dela falava sem cansaço. Lembrava do cabelo, às vezes da roupa que ela estava vestindo, […]

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