Crônica

A descoberta de um Globo de Ovo de Avestruz – gravado por Leonardo da Vinci

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A descoberta de um Globo de Ovo de Avestruz – gravado por Leonardo da Vinci

Porto Alegre está de parabéns. Por intermédio da Embaixada da Áustria, receberá nos dias 24 e 25 de outubro, no Instituto Goethe, o Professor Stefaan Missine, membro da Royal Geographical Society de Londres, para uma palestra sobre o mais antigo globo representando o Novo Mundo. O Consulado Honorário da Áustria em Porto Alegre, o Centro de Estudos Europeus e Alemães e a EUNIC apoiam o evento. 

Fato espetacular: trata-se de um globo gravado por Leonardo da Vinci sobre uma esfera feita de cascas de ovo de avestruz e, além disso, do globo gravado mais antigo. Leonardo pôde desenhá-lo graças à informação geográfica de Amerigo Vespucci, segundo a pesquisa do Professor Missinne baseado em inúmeros fatos e comparações – como os desenhos de Leonardo que se encontram na Biblioteca Nacional em Londres (British Library). Esse desenho em particular foi interpretado – até a recente descoberta desse globo – como uma representação da Lua. Missinne demonstrou, ao contrário, que se trata na verdade de um desenho preparatório para o globo de Da Vinci. “Na sua superfície estão gravados símbolos e um anagrama análogos ao desenho da British Library”, explicou Francesca Grego, na revista ARTE.IT, Roma, em novembro de 2018.

O primeiro mapa a representar o continente americano é o de Juan de la Cosa, feito no ano 1500; o primeiro em que aparece o nome América para identificar o novo continente está na chamada Universalis Cosmographia, de Martin Waldseemüller, de 1507, lemos num mais recente artigo de Kaushik Patowary. Mas agora tudo indica que já em 1504 Leonardo da Vinci tenha fabricado e gravado esse globo, cuja réplica virá a Porto Alegre em outubro. Portanto é ele o primeiro globo a mostrar o Novo Mundo, embora ninguém soubesse até agora que o frágil objeto era obra de Leonardo.

A descoberta ocorreu no dia 16 de Junho de 2012, na feira cartográfica de Londres – um evento organizado pela Royal Geographical Society. Um comerciante holandês literalmente correu atrás do Prof. Stefaan Missinne (um renomado membro da Royal Geographical Society, de origem belga), tentando vender-lhe um globo curioso, supostamente do século XIX, segundo o vendedor, quando esse assinalou o fato curioso de a América do Norte não estar gravada adequadamente. Ao examinar o objeto com uma lente de aumento, o professor Missinne percebeu detalhes que o fizeram suspeitar que tivesse nas mãos uma descoberta mais que notável; em cinco minutos estava feita a venda e Missinne passou a ser o novo proprietário do pequeno tesouro. Mais tarde esse antiquário declararia que se tratava de uma compra feita nesse mesmo dia de outro colega não identificado – um conjunto de acasos que deixa a proveniência do artefato um tanto nebulosa até hoje.

É um milagre que esse globo delicado tenha sobrevivido não apenas desde o século XIX, mas, como irá provar o Professor Missinne, desde 1504! É preciso imaginar que não se trata de uma esfera de metal, nem de gesso sólido, mas de um objeto oco fabricado com as duas metades inferiores da casca de dois ovos de avestruz, unidas delicadamente com uma sutura; essa junção deixa as gravuras feitas na superfície um tanto borradas nessa linha. Antes da sutura, foi colocado um contrapeso de cálcio na metade inferior – ele foi colado com clara de ovo e serve para manter o globo em pé. A pequena esfera tem um diâmetro de 11,2 centímetros e pesa apenas 134 gramas. O mapa representado inclui desenhos de navios, um vulcão, marinheiros, um monstro marinho, ondas, montanhas cónicas, rios e outros elementos e nomes de lugares.

Após um longo percurso de exames e pesquisas – uma investigação envolvendo inúmeras disciplinas e técnicas que ficou documentada e detalhada no livro O Globo de Da Vinci, e, para o público mais amplo, também em inúmeras entrevistas disponíveis no Youtube –, o feliz comprador do globo chegaria à conclusão que a suposta curiosidade do século XIX é, de fato, obra do famoso artista renascentista. Prof. Missinne baseia sua tese em vários fatos, entre os quais um desenho preparatório para o globo em 1503, que pode ser encontrado no Codex Arundel.

O códice de Francesco di Giorgio Martini, datado de 1487-90, contém outro desenho, com a mesma imagem de um navio no Sul do Oceano Índico, de aspecto igual ao que é gravado no globo. E o proprietário deste códice era o próprio Leonardo. É o único livro que sobreviveu da extensa biblioteca de Da Vinci, e portanto o único que contém anotações na sua própria caligrafia.

Segundo os investigadores, tanto os detalhes pictográficos como a forma de aplicação das gravuras (feitas por uma pessoa canhota) apontam para Leonardo como seu autor. Neste sentido, o mapa do globo apresenta, segundo Missinne e Geert Verhoeven, um exemplo de perspectiva inversa, uma forma de anamorfose da qual o primeiro exemplo conhecido é também atribuído a Da Vinci.

Além disso, na folha direita da página 331 do Codex Atlanticus, que data de 1504, Da Vinci escreveu: el mío mappamondo che ha Giovanni Benci (o meu globo que está com Giovanni Benci), o que indica que fora ele mesmo o criador de um globo. 

O professor Stefaan Missinne conclui, de todas essas evidências, “que hoje o frágil objeto feito de ovo de avestruz não é apenas o globo gravado mais antigo que conhecemos, mas também o mais antigo a representar a América”. E ele continua afirmando que Leonardo, enquanto viveu em Florença em 1504, não só teve acesso aos mapas mais recentes, mas a muitas outras fontes de conhecimento, tais como as técnicas de gravação e fundição. 

Mas é preciso mencionar que um globo feito de casca de ovos de avestruzes foi na época um objeto muito exótico e caro, pois essas aves eram criados apenas em casas de príncipes muito poderosos – na Itália da época é conhecido apenas um lugar de criação: a struzzeria do Duque de Milão em Pavia, não longe de Florença, onde Leonardo vivia nessa época.  Ao gravar esse globo, Leonardo fez questão de destacar o nascimento do quarto continente, América, não tanto designada pelo nome de Amerigo Vespucci, mas pela ideia de um mundo novo. O nome que aparece no globo é Mundus Novus (Novo Mundo), ou seja, exatamente o nome que o próprio Vespucci deu a sua descoberta, distinguindo a terra descoberta como continente ou “terra nova” continental de uma simples ilha.

Dadas as semelhanças com o Lenox Globe (conservado na Biblioteca Pública de Nova Iorque), acredita-se que o Globo de casca de avestruz e gravado por Leonardo Da Vinci serviu de modelo para a criação do Globo Hunt-Lenox, até agora considerado o terceiro mais antigo conhecido e cuja data de fabricação é também 1504.

Esse último globo foi feito de cobre com 11,2 centímetros de diâmetro (o mesmo tamanho que o do Da Vinci Globe) e 345 de circunferência e mostra vários sinais indicando que foi modelado segundo o globo de avestruz. Se isso não bastasse o mapa gravado nesse globo é o único mapa histórico que contém literalmente a frase Hc svnt dracones (“aqui existem dragões”, em que “aqui” significa o mar ao redor da península da Indochina). 

The Da Vinci Globe, o livro, no site da Cambridge Scholars Publishing. E um trecho do livro no mesmo site.


Kathrin Holzermayr Rosenfield (CDEA – UFRGS)

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