Crônica

A tenda

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A tenda
A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) montou e manteve por mais de dez anos uma tenda na praça Saldanha Marinho. O espaço se tornou ponto simbólico de encontro de familiares de vítimas do incêndio da boate Kiss. Mas na semana passada a tenda foi retirada, porque o local estava ocupado por pessoas em situação de rua. Releia o parágrafo acima, sem pressa e com atenção. Algo te incomoda nessa notícia? Ainda bem que já aprendemos que o correto é dizer “pessoas em situação de rua” e não “mendigos”. Agora só falta a gente aprender que “tragédia” não é só quando brancos e burgueses se fodem; quando pretos e pobres se fodem, também é “tragédia” que se diz. Se o pessoal da AVTSM compreendesse isso, talvez não tivesse retirado a tenda. Talvez tivesse, inclusive, montado outras. Mas não há compreensão; nem por parte do pessoal da AVTSM, nem por parte de uma parcela substancial da sociedade. A verdade é que, embora nos últimos anos o debate público tenha atentado um pouco mais e melhor às vulnerabilidades promovidas pelo capitalismo e pelo racismo, de modo geral ainda não somos capazes de solidariedade efetiva quando o sinistro aponta a sua metralhadora contra as mesmas vítimas de sempre. A psicanálise talvez nos ajudasse aqui. Porque a impressão que dá é que a sociedade brasileira traz no seu imaginário uma associação dogmática entre tipos de pessoas e tipos de vida e morte, deduzindo daí a sua noção do que seria ou não seria uma tragédia. Trata-se de um branco burguês? Então essa pessoa deve ter uma vida próspera e longeva; esse é o lugar existencial associado a essa pessoa; essa pessoa deve ser feliz, frequentar bons colégios, frequentar a universidade, formar-se, tornar-se uma boa profissional, constituir família, morrer de velha, aos 90 ou 100 anos, depois de ter vivido tranquilamente; qualquer coisa que escape desse roteiro será considerada uma tragédia; se essa pessoa entrar em depressão, e se por isso não terminar o curso na universidade, e se por isso passar o resto da vida sendo sustentada pelos pais, temos aí uma tragédia; se essa pessoa abusar das drogas e das bebidas, e se por isso morrer aos 40 anos com um infarto fulminante, temos aí uma tragédia; se essa pessoa ir para uma festa em uma boate e morrer ainda muito jovem em um incêndio, temos aí uma tragédia. Agora, trata-se de uma pessoa preta e/ou pobre? Então essa pessoa deve ter uma vida terrível e curta; esse é o lugar existencial associado a essa pessoa; essa pessoa não será feliz, não frequentará bons colégios, não frequentará a universidade, não se tornará uma boa profissional, morrerá muito cedo, no máximo aos 50 anos, depois de ter experimentado todo tipo de dificuldades e humilhações; por isso não conseguimos entender como tragédia os fenômenos sociais que atingem exclusiva ou majoritariamente esse tipo de pessoa, como a fome, o abuso de drogas, as chacinas promovidas pela polícia, a falta […]

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