Crônica

Algumas histórias de Aníbal Damasceno Ferreira

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Algumas histórias de Aníbal Damasceno Ferreira

Quem conheceu o Aníbal sabe que ele detestaria ler um texto formal e respeitoso sobre sua vida, falando de suas qualidades intelectuais, de sua erudição, de seus feitos na sala de aula, no cinema, no teatro e na literatura. Por isso resolvi fazer um apanhado acronológico e bastante caótico de minhas lembranças pessoais. Elas começaram a se formar em 1977, quando entrei na Famecos e conheci aquele sujeito magro, barbudo, vestindo calça jeans e camisa bem passada, de pé no balcão do bar, tomando cafezinho.

Com toda certeza muitas outras pessoas têm histórias para contar sobre o Aníbal. Mais antigas, mais verdadeiras e mais engraçadas do que essas. O Antonio Carlos Senna, com quem o Aníbal compartilhou a descoberta dos textos e as pioneiras montagens de Qorpo Santo, tem o dever de contar muitas coisas dos anos 60 e 70. O Luís Augusto Fischer, com quem o Aníbal almoçava cotidianamente nos anos 80 e 90, fez anotações das suas longas conversas e tem um maravilhoso material para compartilhar, incluindo o famoso “Evangelho Cinematográfico”. A Eunice Ramos Coelho, companheira do Aníbal por 40 anos, está convocada a registrar para a posteridade aquelas frases geniais que só ela ouviu, porque o Anibal falava em voz baixa e detestava chamar atenção.

E, é claro, seus milhares de alunos e centenas de colegas da PUCRS – foram 30 anos ininterruptos de sala de aula na Famecos – poderiam montar um gigantesco arquivo de ditos e feitos damascênicos, de suas pequenas ironias e aforismas, que faria inveja a Machado de Assis e Nelson Rodrigues. Enfim, o que relato a seguir é uma pálida sombra do que está por vir. Nem tudo é verdade, é claro, mas o Aníbal sempre preferiu o universo ficcional (ou “diegético”, como aprendi em sua primeira aula) à chata realidade que ele abandonou aos 80 anos.

O Aníbal tinha uma úlcera de estômago. Ninguém sabe se real ou imaginária. A Eunice garante que ele estava curado há muitos anos. Mas o Aníbal vivia se queixando da úlcera, que o impedia de tomar café preto puro. Por isso, quando chegava no balcão e chamava a atendente (sabia nome e sobrenome de todas) tinha que especificar quanto de leite (que detestava), deveria ser misturado ao café. Nos dias em que se sentia melhor, podia dizer, sorrindo: “Hoje é mais pra Glória Maria que pra Vera Fischer”. Nos dias em que estava mais azedo, tinha que se contentar com a Vera Fischer.

O Aníbal tinha formação religiosa, católica, e às vezes ia à missa. Mas a sua fé fraquejou um dia. Estava perto de sua casa, na avenida Azenha, quando o cortejo que levava o papa João Paulo II para rezar sua missa nas proximidades do estádio Olímpico passou bem na sua frente. O Aníbal conta que, de repente, lá estava o Papa, abanando para ele do Papamóvel, bem na frente da Casa Catraca: “É demais! Quem pode acreditar num legítimo representante de Deus na Terra andando pela avenida Azenha, com a Casa Catraca ao fundo?” 

Hoje o local do altar da missa de João Paulo II é chamado de Rótula do Papa. Mas o Aníbal, muito gremista, considerando a proximidade do evento com o Olímpico e seus habitantes (que, como todos sabem, são imortais), dizia que o nome correto daquele cruzamento da Érico Veríssimo com a José de Alencar (mais dois imortais), deveria ser Hectare Universal. No futuro podem até implodir o Olímpico, mas o Hectare Universal ficará lá para sempre.  

Em uma de suas primeiras aulas de linguagem do cinema, o Aníbal explicou o que era enquadramento e falou da importância da altura e lado do ângulo da câmera. “A câmera é considerada frontal quando está em linha reta com o nariz do ator”. E imediatamente perguntou: “E se vocês estiverem filmando uma cadeira?” Todo mundo quieto, inclusive eu. E ele completou: “Aí é só procurar o nariz metafísico da cadeira”. Naquele instante, eu finalmente compreendi o que é Metafísica. 

Quando já éramos colegas, e eu comentava sobre algum aluno particularmente relapso, que parecia não estar interessado em cinema, e que eu pensava em reprovar, ele aconselhava: “Se o esforço terapêutico não funciona, não adianta insistir por mais um semestre. Aplica uma eutanásia acadêmica e passa logo o sujeito”.

No Festival de Gramado, final da sessão de um filme brasileiro muito longo e pretensioso (que não vou nomear, em respeito ao colega), eu me viro para o Aníbal, que estava uma fileira atrás de mim, e pergunto o que achou. Ele coça a barba e diz: “Tem toda a chatice de um grande filme. Pena que não é um grande filme.” 

Sobre o esforço muito grande de um outro cineasta para fazer um filme “bem feito”, mas que tropeça feio na cena final: “Ele filmou como aquela mulher brega que vai no baile e, para não errar no figurino, pede conselho para uma amiga grã-fina. Os conselhos são seguidos à risca e, na hora de ir para o baile, a dondoca está perfeita. Mas aí ela lembra de um brinco grande, de falsas esmeraldas, que ganhou do marido de aniversário, e não resiste. Arranca os brinquinhos de pérola e pendura os brincões. Pronto, ela está acabada. O brinco mostra quem ela é.”

Sobre o Cinema Novo: “O Glauber Rocha não é o fim da picada. É o começo da picada. O fim da picada é o Neville D’Almeida.”

Quando eu, o Nelson Nadotti e demais colegas terminávamos um filme na Famecos: “Vamos ver logo esse super-8 de vocês e analisar a sua patologia cinematográfica.”

Brabo com encenações de Nelson Rodrigues: “Os diretores acham que os atores têm que gritar o tempo todo. Ninguém acredita em nada. Esses imbecis tinham que parar a gritaria e fazer elenco falar que nem gente.”

Ao me emprestar “Reflexões sobre a erudição”, de Howard M. Jones: “Dá uma olhada no que ele escreve sobre gramática. Vocês podem fazer o que quiserem nos filmes de vocês, inclusive desrespeitar as regras. Mas tem que conhecer a gramática pra desrespeitar direito.”

Ao escrever para o americano Joseph Mascelli, autor do clássico livro didático “The five C’s of cinematography”, que está dividido em cinco capítulos: camera angles, continuity, cutting, close-ups, composition: “There is another C: contraventions.” Mascelli escreveu de volta, concordado.   

Depois de contar detalhadamente o enredo de um conto obscuro de Machado de Assis, que, segundo ele, tinha Porto Alegre como cenário, ele suspirava: “O cinema não passa de um gênero literário.”

No bar, tomando cafezinho: “Tudo que interessa na linguagem do cinema pode ser ensinado em cinco aulas. O resto de tempo a gente fica falando da vida.”

Depois de me ouvir elogiar o roteiro de um filme gaúcho, que qualifiquei como “muito esperto”: “Cuidado: arte não tem nada a ver com esperteza.”

Acho que essa lição é a mais séria e importante que ele me deu. Não canso de repeti-la para meus alunos. Eles não acreditam, é claro, mas aí eu engato mais umas histórias do Aníbal, e o tempo vai passando…


Carlos Gerbase é cineasta, professor de cinema na PUCRS, escritor, mítico baterista da banda Os Replicantes. 

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