Crônica

Aluno bolsista ou cotista?

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Aluno bolsista ou cotista? Foto: Robin Jonathan Deutsch/Unsplash

“Ano passado eu te dei dois décimos no conselho de classe porque tu é atleta na escola, mas trata de estudar porque esse ano eu não vou te dar nada, porque, pra mim, aluno bolsista nem deveria estar nessa escola.”

Eu tinha 14 anos quando despertei interesses de algumas escolas particulares que me ofereceram bolsa de estudo de 100%.

Meus pais eram funcionários públicos, viviam abaixo do mau tempo, sempre com contas atrasadas, sustentavam eu e mais três irmãos. Era uma vida bem difícil, mas não faltava comida, tínhamos um banho quente, dividíamos um quarto entre quatro irmãos, mas, como éramos meio que turistas em casa, era entrar e dormir para no outro dia de manhã cedo já sairmos cada um para o seu lado, assim como os meus pais para os seus respectivos trabalhos.

Sempre fomos incentivados a tomar decisões desde cedo, e aos 14 anos eu tinha que decidir para qual das escolas que me ofereciam bolsa, eu iria. Acabei escolhendo a escola que fui melhor recebido, que tinha tradição nas competições escolares e que tinha faculdade de educação física, pois eu já me imaginava sendo um atleta jogador de basquete e posteriormente professor, treinador ou algo relacionado ao esporte.

Foram três anos bem difíceis. Havia um oceano que me distanciava daquela realidade, tanto social e econômico, mas principalmente racial. Eu não me sentia pertencente, eu não me via como um aluno, mas sim como um atleta que representava a escola nas competições.

Piadas e brincadeiras racistas eram diárias, e eu não tinha nem com quem reclamar ou procurar para dividir o quanto me incomodava ouvir tantas barbáries.

Lembro de um episódio dentro da sala de aula, e eu nem estava envolvido. Sentava bem no fundo da sala para que ninguém me visse, e a discussão ficou bem forte entre dois colegas, um menino e uma menina. Vi que podia acontecer uma agressão física e me meti para separar. Foi quando uma colega gritou: “Não te mete, negrão, tu nem paga escola, tu é bolsista”. Eu sei, o maior azar, porque na hora que eu respondi e mandei ela tomar no cu, e foi bem no momento que o professor estava entrando na sala.

Fui encaminhado para a orientação, recebi um belo sermão de que ali não seria o local para eu dizer aquilo, e que eu não usasse mais aquele tipo de linguajar dentro daquele ambiente. Fui suspenso; a menina era filha de um empresário conceituado.

Eu fui entendendo que ali as dificuldades aumentavam a cada dia, e que para eu conseguir me manter teria que me fazer de surdo e cego, e continuar no fundo da sala para não ser o alvo.

O uso de drogas era bem comum. Havia uma praça na frente da escola que era o ponto de encontro. Eram dezenas de alunos que atravessavam para fumar maconha, não só no recreio.

Com o passar dos meses, o uso era no próprio pátio, e a partilha dos tijolos ocorria dentro do Grêmio Estudantil.

Certa vez, eu estava no Grêmio, e foi quando percebi uma movimentação estranha, um entra e sai dessa gurizada que todos sabiam que eram usuários. Eles estavam dividindo um tijolo de maconha entre os que haviam feito uma vaquinha. Foi então que um deles me ofereceu um pedaço: “Toma aí negão”. Eu prontamente recusei, e agradeci. Foi quando ele disse: “Tá bom então, nunca vi um negão que não fume maconha”.

Foi num desses retornos de recreio que um professor estava aguardando a turma voltar para sala de aula. Todos foram entrando, até que chegou na minha vez, e o professor fechou a porta, ficando só eu e ele do lado de fora da sala.

Ali eu tive a certeza de que eu não era pertencente àquele espaço, e que por melhor atleta que eu fosse, eu não era aluno, pois na concepção daquele professor, bolsista nem era para estar ali.


Márcio Chagas da Silva é ex-árbitro de futebol, ativista antirracismo, professor de Educação Física, pai do Miguel e da Joana.

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