Crônica

Amarelinhos

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Amarelinhos

Estive quase diariamente na Feira do Livro, então vi pelas ruas marchando indecisos cordões vestindo as cores do tal patriotismo, indo ou vindo dos quartéis. Lá, provavelmente, se sentiam mais à vontade. 

– Brasil acima de tudo – exclamavam. Mas na hora de escrever a faixa, acham mais chique o inglês: “Brazil was stolen”.

Na Feira, mostravam-se um tanto perdidos e desconfortáveis. Raramente passavam pelo miolo, escolhiam o caminho lateral entre os fundos das bancas e a praça, quem sabe temerosos de se contaminarem com os livros (kriptonita vermelha) ou simplesmente por desprezo ou vergonha. Seu programa preferencial: comprar churros ou pipoca doce e tirar foto com o esquilo do Zaffari. Juro que nunca vi nenhum deles comprar um mísero livro, nem de autoajuda.

Na nossa banca, uma dondoca olhava os livros com uma cara de inteligente, enquanto seu acompanhante tirava fotos. Expectativa! 

Feito o retrato, se foram. Era só pra se exibir no instagram. 

Sei de gente que tentou conversar com eles, mas só ouviu a repetição os mantras do zap zap. 

– Supremo é o povo!

– Bem, o povo deu vitória ao Lula!

– Eleição roubada.

– Mas o próprio relatório do Ministério da Defesa não encontrou irregularidades.

– Lula ladrão!

– Mas foi inocentado de todos os processos contra ele.

– Minha bandeira nunca será vermelha. 

– Alguma vez alguém cogitou…?

– Criminalização do comunismo! Intervenção militar!

Alguns acham-se participantes de uma heroica cruzada patriótica – Liberdade ou morte! (Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição, de morrer pela Pátria e viver sem razão) –, mas não conseguem explicar o que tem de heroísmo em pedir a volta da ditadura.

Outros parecem meio perdidos, andam a esmo, vão e voltam sem muito palpite.

Vendo o desfile – alguns enrolados na bandeira, outros com modelitos fashion vendidos pelos camelôs, mas a maioria com camisetas do Neymar Jr –, tentei elaborar um padrão. Provavelmente, há muitos que estão lá por causa do sanduba ou de alguma gratificação em espécie, mas não são a maioria. Basta ver a coleção de camionetes importadas com bandeirinhas no vidro estacionadas na Mauá. Em geral, integram o que antigamente se chamava classe média – agora, seriam novos pobres. Antes se diziam de Centro, depois se assumiram de Direita e agora foram tragados pela Extrema Direita. São:

Pessoas idosas que iniciaram uma tardia militância de rua no Parcão. 

Rapagões de academia. 

Homens de meia-idade e inteiro mau humor, acompanhados de resignadas esposas parceiras, tipo na saúde e na doença.

Grupos de mulheres adoradoras da Carla “Te amo, espanhola” Zambelli, que apoiam a forma como Bolsonaro destrata outras mulheres.

Poucos negros – mas têm.

Não percebi nenhum LGTBQUIA+ assumido. Provavelmente, muitos enrustidos.

Alguns anacronismos. Um jovem “descolado” tipo Partido Novo apareceu enrolado em uma bandeira… do tempo do Império!

Todos empanturrados de fake News.

Pela crença inabalável nas postagens do Gabinete do Ódio, acreditavam piamente que Bolsonaro venceria a eleição. Daí a decepção, seguida de revolta alimentada pela grana de empresários negacionistas e espertalhões. 

Inocentes úteis? Inúteis.

(Tudo isso não é por acaso. Trata-se de um plano em andamento. Sugiro o filme “Brainwashing my dad”. Tem no Youtube)

Excluído um escracho bolsonarista que interrompeu uma peça infantil deixando várias crianças chorando, um buzinaço da Siqueira Campos apontado para a Feira e as insuportáveis vuvuzelas aqui e ali, não ocorreram confrontos a registrar. 

Um gaiato imita a voz do Bolso:

– Chega de mimimi. Vão chorar até quando? É só uma derrotazinha.

Impossível não rir.

Um grupo de adolescentes devidamente adesivadas dançava:

– Tá na hora de Já ir! Tá na hora de Já ir!

Impossível não cantar.

E os patriotas passavam pelas alamedas fingindo que não era com eles. 

Tem algo de psicanalítico. O menino perde no jogo de futebol e chama o pai pra resolver as coisas por ele, nem que seja para dizer que não tem mais jogo. O pai não quer decepcionar o menino, mas sabe que é uma fria, então fica lançando mensagens dúbias e por aí se vai. 

Às vezes, quando tinha criança no meio, fiquei com vontade de sugerir: compra um livro, ou mais de um, pra que daqui a vinte anos esse ou essa inocente não fique pagando esse mico.

Bem, no fim, os livros deram de goleada.


Rafael Guimaraens – Escritor, lançou nesta Feira O incendiário (editora Libretos), a rocambolesca história de Manuel Gonzalez de Aragón, um criminoso de ópera-bufa que andou por Porto Alegre.

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