Crônica

Aqui na gringa #12

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Aqui na gringa #12 Foto: Arquivo pessoal

Dora Lúcia de Lima Bertulio é uma advogada que há pouco se aposentou, aos 75 anos, como procuradora geral da Universidade Federal do Paraná. Já não é pouco para uma mulher. Mas tem mais: Dora Bertulio é negra. E mais ainda: seu pai foi um sindicalista (da construção civil) comunista preso em 1964, e sua mãe foi “do lar”, quer dizer, trabalhadora doméstica. O pacote todo sugere um quadro muito especial, partindo desta origem muito frágil para as alturas sociais de seu cargo final.

Dela foi feito um excelente perfil na Folha de S. Paulo domingo passado. Ali se lê que a doutora Dora foi responsável pela implantação das cotas para pessoas negras na UFPR, a segunda universidade brasileira a adotar o sistema, a partir de 2004. Uma reflexão dela me calou fundo; reproduzo a frase sobre as cotas: “Foi a maior revolução cultural que este país já teve, que nem na abolição nós tivemos. Foi quando pela primeira vez os brancos passaram a discutir sobre relações raciais”. 

Este é o ponto: as cotas impuseram a todos uma atenção para algo que até então apenas as pessoas negras precisavam encarar – o fato de haver racismo, neste caso na distribuição das chances de ingresso e de permanência na universidade.

Isso é Brasil, não se passou cá nos EUA. Mas lembrei de oferecer essa pérola para falar de algo que vimos ao vivo em visita à cidade de Philadelphia, ou Filadélfia, no estado da Pensilvânia, bem perto de onde estamos morando. A cidade ficou famosa mundo afora pelos filmes do Rocky, estrelados por Sylvester Stallone. Sabe aquela imensa escadaria que ele sobe pulando de dois em dois os degraus? É na entrada do Museu da cidade, uma joia de acervo e inteligência. 

Eu com meus filhos fazendo pose (meio desanimada) de Rocky na escadaria do Museu 

Antes do museu, fomos até o centro histórico da cidade porque lá há marcas importantes ligadas ao que eles aqui chamam de Revolução Americana, em geral conhecida como a Independência, aquele processo deflagrado em 1776 pelo qual 13 colônias britânicas cá deste lado do Atlântico resolveram se conceber como independentes da antiga metrópole – evento que serviu de farol para as demais colônias na América, inclusive o Brasil. 

Tem lá o Sino da Liberdade, tem a Casa dos Amigos (como os Quakers chamam a sua igreja) onde foi feita uma parte da trama, tem um museu para a Constituição, tem uma série de traços daquele tempo. A cidade foi capital do novo país, imagina só. E seu nome carrega uma ideia de fraternidade: filos + adelfos = amor fraternal, mais ou menos. Uma linda história. 

E tem mais uma coisa de interesse, que se liga enviesadamente com a doutora Dora: um reconhecimento ao papel até há pouco invisível dos escravizados no processo todo. Olha essa imagem que está estampada na praça que une esses monumentos todos: 

Diz o texto: “Eu e meus servos”. A 22 de novembro de 1790, o presidente Washington chegou na casa presidencial para estabelecer sua moradia e escritório. Com ele, estavam oito escravizados descendentes de africanos, que Washington pessoalmente fez circularem entre aquela casa e Mount Vernon [a fazenda de sua propriedade, no vizinho estado da Virgínia], para escapar da lei de abolição gradual da Pensilvânia, que teria permitido a eles requererem sua liberdade depois de seis meses de residência. Os escravizados eram Hercules, seu filho Richmond, Oney Judge, Austin, irmão de Oney, Moll, Christopher, Giles, Paris e Joe, que veio depois.

Entende como é? George Washington, o primeiro presidente, aquele que nomearia a futura capital, o grande estadista, usou uma manobra canalha para impedir seus escravos de se emanciparem quando a lei da Pensilvânia já indicava essa possibilidade concretamente. O cara não deixava seus escravos viverem por seis meses consecutivos ali, para não terem o direito à liberdade. Eles eram mandados para Mount Vernon e de lá voltavam.

Eram 8, mais o Joe esse, que veio depois, ou nasceu depois, talvez de um ventre escravo, talvez dessa mulher chamada Paris – que nome sugestivo, pensando na capital francesa como palco da Revolução libertária de 1789!

E o que fizeram os americanos desta cidade? Em vez de esconderem essa patifaria, tiveram a dignidade de exporem seus nomes em praça pública, com esse texto aí de cima e mais esse monumento em pedra: 

Ficam aí nomeadas, ainda que precariamente, sem sobrenome, essas pessoas, injustiçadas duplamente, pela escravidão e pelo impedimento a acessarem uma lei que lhes proporcionaria a liberdade. Ficam aí de algum modo eternizadas na durável pedra, aos olhos de todos. Ficam aí como uma reparação simbólica, mas valiosa para um acerto de contas com o passado.


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Atualmente, está passando um semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).

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