Crônica

Aqui na gringa #13

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Aqui na gringa #13 Foto: The MET/NY

Nos anos 1980 entrou em circulação pra valer o ensaio de Walter Benjamin, no Brasil. Havia uma tradução parcial anterior, que pelo que sei pouco repercutiu por aqui; mas nos 80 e 90, com a publicação de uma série de 3 volumes para editora Brasiliense, com tradução do Sérgio Paulo Rouanet, Benjamin foi um darling. A gente o lia com gosto, alguns mesmo com fé. Benjamin sabe expor lindas intuições, de vez em quando com os pés firmes no terreno marxista, mas muito frequentemente bem longe desse chão, oferecendo passagens de certa sugestiva obscuridade, que nos estimulava a pensar nos meandros de seu pensamento. 

Foi todo um momento da crítica literária e artística. Claro que ele ainda hoje é muito legível e segue sendo estimulante. Mas uma geração atrás ele tinha um quê de profeta – profeta sem esperança, porque vaticinava um mundo desprovido de sentido, e oferecia como compensação um passado íntegro, que não volta mais. Que nunca volta mais. Lembro de ler muita coisa dele e sobre ele; e não me surpreendeu quando saiu no Brasil um livro de correspondências entre ele e Gershon Scholem, outro grande pensador de sua geração, este claramente místico, em aparente disputa com o materialista Benjamin. 

Enfim, esse papo todo me veio à mente ao escolher o assunto desta crônica, aqui da gringa, onde estamos vivendo um semestre. E o tema apareceu junto a palavra “aura”, ou melhor, a queda da aura. 

Aura é um tópico muito vivo da obra do Benjamin. Muita conversa rolou sobre o ponto – para começar, a gente queria entender o que ele considerava “aura”. “O aparecimento súbito de uma coisa distante” era uma das paráfrases dele para o conceito. “A aura acena pela última vez na expressão fugaz de um rosto nas antigas fotos. É o que Ihes dá sua beleza melancólica e incomparável”, outra. Aura é que acaba com a mercantilização da arte, com a reprodutibilidade do objeto artístico. 

Aura é a palavra de tamanho médio para o diminutivo “auréola”, aquela rodinha sobre a cabeça dos santos católicos, nas pinturas. A queda da aura é o desaparecimento da auréola, digamos: a falência da suposta santidade e da singularidade incomprimível do objeto. 

Fui longe, desculpa aí. Tudo o que eu queria era criar um ambiente para falar da minha alegria aurática de ver obras dos grandes pintores ao vivo. Vivendo a uma hora e pouco de trem de Nova York, dá pra imaginar quão fácil tem sido ir até lá para visitar o Met, por extenso o Metropolitan Museum of New York. A companheira Julia e eu já entramos seis vezes naquele portal. Portal para o mundo com aura, digo eu de mãos dadas com o Benjamin, o Walter. 

Ter essa oportunidade é qualquer coisa de inimaginável para aquele eu dos anos 1980, já professor de literatura, já interessado em arte e em sua historicidade, já leitor do Benjamin, há tempos leitor de história da arte, colecionador entusiasmado dos fascículos que a editora Abril espalhou pelo país com reproduções dos grandes mestres da pintura ocidental, mas vivendo em Porto Alegre, quer dizer, longe da obra singular e irrepetível, aquela que teria a aura, na visão do grande comentarista. 

Foi bem nos anos 80 que eu passei a conviver com o Paulo Coimbra Guedes, meu grande amigo e interlocutor, meu sábio vivo predileto. Tive a grande sorte de ajudá-lo a publicar um romance singularíssimo, chamado Tratado geral da reunião dançante, pela Artes e Ofícios, que saiu nos anos 1990. Não dá espaço para falar desse sensacional livro aqui; ele voltou à minha memória porque um dos capítulos tem uma debochada epígrafe envolvendo a aura, sua queda e sua vertiginosa carreira lomba abaixo. A frase: “Me empresta teu Van Gogh pra eu fazer um xerox?”

Ver de perto um Van Gogh (na verdade uns vinte van goghs) tem mesmo qualquer coisa de religioso, no sentido esse da aura: a gente entra em contato com a obra em sua materialidade imediata, como se vendo pela primeira e súbita vez algo que por outra parte é nosso velho conhecido. 

Digo isso, por favor não me entenda mal, não por exibicionismo, mas para contar dessa singular ocorrência: esse encontro que de algum modo ganha uma auréola em torno de si. E ao mesmo tempo, contando isso, me assoma à consciência uma sensação de inutilidade do relato. Ah, tu teve uma iluminação, foi? E o quéco? E o quico? 

Barato leitor, trivial leitora, meus irmãos, meus semelhantes: assim é. Ninguém tem nada a ver nem com as nossas dores, nem com as nossas iluminações. Assim é. Vai um abraço, de todo modo, carregado da emoção de ter estado lá, diante dessas imagens que aqui são apenas imagens mesmo. 


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Atualmente, está passando um semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).

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