Crônica

Aqui na gringa #14

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Aqui na gringa #14 Ilustração em xilogravura da edição de 1773 do livro de Mary Rowlandson – Domínio Público

Vai aqui a tradução aproximada de um texto em inglês (o original vai no final desta crônica): 

A segunda mudança. Mas agora (na manhã seguinte) precisei virar as costas para a cidade e viajar com eles para o vasto e desolador Sertão, não sei para onde. Nem minha língua ou minha caneta pode expressar as tristezas do meu coração e a amargura do meu espírito que tive nesta partida: mas Deus estava comigo em sua maravilhosa maneira, me carregando e sustentando meu Espírito, para que não desfalecesse completamente. Um dos Índios carregava meu pobre bebê ferido em um cavalo: ele gemia o tempo todo, vou morrer, vou morrer! Eu fui a pé atrás dele, com uma tristeza que não pode ser expressa. Então, tirei-o do cavalo e o carreguei nos braços, até que minha força falhou, e eu caí com ele. Então eles me colocaram em um cavalo, com meu filho ferido no colo; e não havia nenhum arreio no cavalo; enquanto descíamos uma colina íngreme, ambos caímos sobre a cabeça do cavalo, com o que eles, como criaturas desumanas, riram e se alegraram ao ver aquilo, embora eu pensasse que ali terminaríamos nossos dias, vencidos por tantas dificuldades. Mas o Senhor renovou minha força ainda, e me levou adiante, para que eu pudesse ver mais do seu poder, sim, tanto que eu nunca teria imaginado se não tivesse experimentado.

Que texto é este? Ele é apenas um parágrafo de um livreto de umas 50 páginas, publicado em inglês, primeiro na chamada Nova Inglaterra e depois em Londres, em 1682. O livro se chama, por extenso, A verdadeira história do cativeiro e do resgate da senhora Mary Rowlandson. Esposa de um pastor inglês, colono da América do Norte naquele território que viria a ser parte dos EUA, ela foi sequestrada por indígenas, junto com seus filhos, num dia em que o marido tinha ido buscar auxílio em outra cidade justamente por temer um ataque dos nativos. Eles viviam em Lancaster, Massachussets.

(Quando outra escritora, a senhora Harriet Beecher Stowe, publicou o blockbuster A cabana do Pai Tomás, em 1852, conquistando corações e mentes para a causa da abolição, esse livro contando do cativeiro junto aos índios já era velho de 170 anos!)

Página da Enciclopédia Britannica sobre Mary Rowlandson

Tem tanta coisa estranha à experiência brasileira! Vou alinhar algumas. A primeira e uma das mais impressionantes: foi escrito por uma mulher, que, para tal, certamente sabia ler e escrever fluentemente. Ela foi sequestrada (em 1676), foi mantida em cativeiro por onze semanas e cinco dias e manteve os dados na memória para escrevê-los adiante. Ao final, perdeu alguns dos filhos mas recuperou outros – e o tempo todo manteve a fé nesse Deus, que ela louva mesmo nos momentos mais negativos.

Faça as contas comigo: 1676 é exatamente um século antes da Independência das 13 colônias que formaram os Estados Unidos da América. Sabe o que havia no Brasil neste momento? 

O ouro ainda não havia sido formalmente descoberto; fazia um século que os franceses haviam sido expulsos do Rio de Janeiro, que só viria a ser a capital do império português na América quase cem anos depois, 1763. O que havia de cidade grande era Salvador, primeira capital local; provavelmente nenhuma mulher que vivia no futuro Brasil teria condições de escrever um relato como esse da senhora Mary. Nenhuma, porque as mulheres, mesmo as da elite, raramente aprendiam as letras a esse ponto. 

Em 1676, quem escrevia em Portugal e no Brasil eram homens e apenas homens, e nenhum deles escreveria um depoimento em primeira pessoa assim mergulhado na vida cotidiana. O padre Antônio Vieira nesta altura estaria redigindo sermões e relatórios ao seu superior para falar das tarefas dele como agente da igreja católica. Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”, também estava vivo e escrevendo, sem nunca ter publicado nada em vida. 

Porto Alegre não figurava nem no horizonte (a primeira figura europeia a viver na cidade com carta oficial foi Jerônimo de Ornelas, que chegou ali por 1732), e nem o porto de Rio Grande existia (foi inventado em 1737). O que sim havia era o movimento que resultaria nas Missões (a primeira em nosso território foi fundada em 1682) – e, no interior do que hoje é Alagoas, estava em se apogeu o Quilombo dos Palmares (que seria destruído em 1695). 

E para quê estou eu a despejar esses dados? Para apontar numa direção comparativa que, estando cá na gringa, fica cada vez mais saliente para mim: este país aqui lida com a língua de um modo muito mais direto, pragmático, empírico, e tem voz feminina em cena desde esse remoto tempo. No Brasil, mal agora, século 21, nós vamos nos livrando da obrigação idiota de cultivar uma modalidade pedante de língua escrita, que por todo esse tempo, desde o começo da colonização, nos impingiu como certo, aliás, como único o jeito classicista, parnasiano, ruibarbosiano, advocatício de escrever – e as mulheres só puderam se expressar por escrito, meldels, muito depois, muito raramente, e ultrapassando muitas barreiras, de variadas ordens. 

Por isso tudo é que uma figura como Maria Firmina dos Reis – que, aliás, é bem possível que tenha lido A cabana do Pai Tomás –, com seu romance Úrsula (1859), é um milagre a ser reverenciado. 

O texto original:

The second remove. But now (the next morning) I must turn my back upon the Town, and travel with them into the vast and desolate Wilderness, I know not whither. It is not my tongue or pen can express the sorrows of my heart and bitterness of my spirit that I had at this departure: but God was with me in his wonderful manner, carrying me along, and bearing up my Spirit, that it did not quite fail. One of the Indians carried my poor wounded Babe upon a horse: it went moaning all along, I shall die, I shall die! I went on foot after it, with sorrow that cannot be exprest. All length I took it off the horse, and carried it in my arms, till my strength failed, and I fell down with it. Then they set me upon a horse, with my wounded Child in my lap; and there being no furniture upon the horse back; as we were going down a steep hill, we both fell over the horse’s head, at which they, like inhuman creatures, laught, and rejoiced to see it, though I thought we should there have ended our days, as overcome of so many difficulties. But the Lord renewed my strength still, and carried me along, that I might see more of his power, yea, so much that I could never have thought of had I not experienced it. 

Fonte: Colonial American travel narratives, ed. by Wendy Martin. New York: Penguin Books, 1994.


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Atualmente, está passando um semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).

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