Crônica

Aqui na gringa #18

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Aqui na gringa #18 Foto: Arquivo pessoal

Coisas banais: pedir um café bom depois do almoço. O cara olha o cardápio e lá tem alguns tipos: um “espresso”, um “espresso” duplo, um com leite, o “latte”, doce pra burro, outro com leite, o “machiatto”, outro “capuccino”, doce de vomitar, e outro ainda “americano”. Assim mesmo, escrito como se fosse em espanhol ou português. Não é “american”, mas “americano”. 

Em resumo: café mesmo, sem leite e outros doces, três tipos. Meu gosto é outro. O “espresso” é forte demais, uma coisa demasiada, porque eles aqui entendem “espresso” como um “ristretto”, aquela bomba; o duplo é a mesma coisa mas multiplicada por dois; resta o “americano”. 

Ocorre que esse “americano” é uma água suja. Um troço com volume de um refrigerante médio, com gosto de papel e cor escurinha. Horrível também. Esse padrão se repete em todos os lugares, incluindo os cafés, que deveriam ser especializados. 

Meu gosto é outro, e não é difícil de entender: gosto de um preparado que tem o pó de um “espresso” mas com o dobro de água. Apenas isso. Me contentaria com o que a gente chama de “carioca”, quase o mesmo que na França se chama “allongé”, um “lungo”. 

Já testei em tudo que é lugar: pergunto se não tem como me servir um “espresso” mas com o dobro de água. Apenas o dobro de água, mesma quantidade de pó de café. Não rola. Eles não entendem, no mais profundo de seu ser. 

Ontem mesmo ocorreu de novo. Pedi com a clareza necessária um “espresso” mas com o dobro de água, e o que veio foi uma mixórdia, uma coisa quase intragável. Por quê?

Acho que, a julgar pela amostra que tenho nesses poucos meses de vida aqui na gringa, eles não são bons em improvisar, em sair do trilho. Nem é sair para ir lá adiante, sair apenas uns passos para o lado, como esse meu pedido.  

Outro exemplo: nesse restaurante de ontem, estávamos em 3 e a conta deu uns 90 dólares (caro para um almoço brasileiro comum, mediano aqui). Eu pagaria por dois, meu colega Rodrigo Simon de Moraes, com quem dividi o seminário de literatura aqui, pagaria a sua parte. Chamamos a moça e eu estendo meu cartão e digo “por favor, dois terços neste cartão”. Não é difícil de entender: dois terços. A conta com 90, vamos combinar, é simples: divide noventa por 3 e soma dois desse valor da divisão: dois terços de 90, 60.

O Rodrigo avisou antes: ela não vai entender. Eu duvidei. E o Rodrigo tinha razão: ao ouvir essa equação, dois terços num cartão e o outro terço em outro, ela fez cara de espanto, levantou as mãos até a altura da metade de seu corpo e as abanou dizendo “Não, não entendo”, ou “não é possível”, algo assim. O Rodrigo riu pra mim e tivemos que fazer de outro jeito – acabamos rachando em dois a conta, motivo pelo qual estou em dívida com ele. 

Poderia estender os exemplos, mas acho que chega. 

Não é que os americanos não sejam bons e excelentes num monte de coisas: eles são. Muito bons em muita coisa. (E, fazendo um juízo genérico, não me pareceram em geral hostis ou algo assim. Mas sim, eu sou branco e velhinho, com cara de quem poderia ser daqui mesmo há muitas gerações, então não sei se dá pra generalizar muito.) Mas em improvisar eles são fracos.  

Tem o jazz, alguém vai lembrar; e o jazz tem na sua alma uma imensa franja de improvisação. (Uma definição de jazz que trago comigo diz que ele é o estilo de música em que cada músico toma decisões o tempo todo. Não sei de quem é a frase, mas é boa.) Ocorre que o jazz, me apresso a dizer, é negro em sua origem, e os negros, aqui e em todos os lugares em que viveram escravizados, improvisavam muito na vida, por necessidade e, com o tempo, por virtude. 

O que eles têm muito aqui, mesmo, é maçã. Nesta época agora, inverno aqui, tem não menos de dez tipos diferentes de maçã. É bom que assim seja, mas eu pergunto: e cadê todo o resto que tanta falta me faz? Cadê o papaia e o formosa, cadê o cáqui chocolate, cadê o abacate gordo e lindo? E vocês aí, comendo uma variedade maravilhosa de pêssegos e ameixas e melancias e não digo mais?  


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Atualmente, está passando um semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).

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