Aqui na gringa #6
Li no Página 12, excelente jornal argentino, um artigo de Sandra Russo sobre o “longoprazismo radical”. Essa tendência é o seguinte: os muitíssimo ricos vocalizados por gente como o candidato Javier Milei (já viu o cara? Vale a pena, para se assustar), e aqui entre nós por Bozo e seus prepostos, por hesitantes que sejam, estariam engajados num jogo de longo prazo radical.
Aqui no presente, simplesmente ignorar os problemas das pessoas reais, deixando-as à míngua, e deixar rolar a crise climática, que não teria conserto mesmo.
Para esses mileístas e bozozoides, o negócio é embarcar, na maciota, numa nova arca de noé, deixando o mundo real ir pra banha, pra casa do cachorro ou qualquer outro desses lugares metafóricos que indicam a chegada do fim do mundo.
Vão mesmo sobrar poucos, e azar: essa gente crê que assim se garante no longo prazo, quando com inteligência artificial e uns poucos em volta. Estado de bem-estar social, políticas de compensação e reparação, nada disso faz sentido para eles. O mercado, dizem eles radicalizando a velha premissa ultraliberal, vai dar o tom e ele mesmo vai tocar a peça inteira.
Gente como o senhor e a senhora e eu estamos longe dessa posição e das urgências implicadas no processo. Seremos convidados para a arca essa? Teremos conhecidos nela? Esses conhecidos, certos de não estarem em nenhum Titanic, nos oferecerão algum bote no agudo das enchentes?
Olho pela janela e contrasto tudo isso com a calma da chuva que marca a entrada do outono aqui no Norte. Não consigo esconder de mim mesmo a consciência de que este é o país que manda no planeta, ao menos até aqui, e se beneficia sempre, como sócio forte da arca, seja ela qual for. (Arca aqui tem a contrapartida de ser um empreendimento aberto a acionistas, como ocorre com o Pequod, o barco que vai caçar Moby Dick pelos mares afora.)
No miúdo dos dias tem coisas interessantes, naturalmente. Olha só o caso do Denilson Baniwa: artista brasileiro, que se assina com o nome de sua etnia (confira nesta fonte quente https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Baniwa). Ele esteve aqui em Princeton, produzindo sua arte e conversando com os interessados.
Na foto abaixo, o Denilson tá conferindo uma montagem com ares de brincadeira, com bonequinhos e outros adereços de Playmobil. Um camarada está fotografando essa cena a partir do ângulo que reproduz a visão de uma xilogravura do final do século 17, que o Denilson consultou e fotografou na imensa, inacreditável, sensacional, irrepetível Biblioteca Firestone, da Universidade.
(Sim, o nome da biblioteca se deve ao fato de que a família Firestone, dona daquela marca de pneus e tal, doou uma grana incalculável para esse fim.)
Além disso, o artista tá produzindo um amplo desenho, a canetinha preta, mais uma vez inspirado em xilos do primeiro século da colonização europeia no futuro Brasil.
A biblioteca deu ao Denilson – gente muito fina e um intelectual igualmente fino – a chance de ver de perto a percepção de europeus que andaram pelo futuro Brasil, e ele agora parodia a gramática desse pessoal, numa atitude de quem quer usar as mesmas armas artísticas para agora organizar a sua visão.
Aqui tem uma capivara, numa xilogravura lá daquele tempo (diz a legenda: Capivara ou Porco d’água ao pé de uma bananeira).
E aqui tem a paródia do Denilson:
A capivara, o nosso capincho, imaginada pelo Denilson, ao pé da mesma bananeira, lê algo numa telinha.
Nem a capivara, nem o Denilson, talvez nem qualquer um de nós aqui envolvidos, vai estar na arca do Milei.
Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Atualmente, está passando um semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).