Crônica

Cabeça de alfinete

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Cabeça de alfinete

Quando nos mudamos da Vila Jardim, nem a avenida principal era calçada. Cavalos ainda pastavam pelas ruas. Começavam um povoado no costado de um mato. Do outro lado da cidade. Na estrada das Tamancas. Pai foi e me levou. Só eu e ele. Me embrenhava naquele mato. Perdia a noção do tempo. Sabia o lugar dos ninhos, a toca dos bichos. Tomava banho no riacho. Tive o mesmo sonho duas vezes. Minha canoa descia um rio estreito, ensombreado, que desaguava num amplo descampado. Eu ficava oculto na borda da mata. Tinha medo do espaço aberto. Porto Alegre, cidade da minha infância. Grão de areia no espaço. A estrada das Tamancas dava na Bento Gonçalves. A Bento desaguava no mundo. Eu tive que ir. Minúsculo fragmento. Cabeça de um alfinete. Minha história. Pai dizia que guri também pode trabalhar, ganhar dinheiro. De dentro do ônibus, apontava os engraxates, baleiros, sorveteiros, vendedores de jornal. Têm a tua idade, até menos. Eu via os meninos sujos. Sentia vergonha e medo. Ele falava manso. Mas não esquecia do assunto. Na igreja, me mostrava os sapatos das pessoas. O meu e o dele sempre bem lustrados. Começou mandando eu engraxar sapatos nos cultos de sábado. Fez uma caixa de engraxate, envernizou. Comprou escova nova, tintas e graxas. Apareceu com uma bonita flanela verde. Para abrir o brilho. Na igreja, foi pouco tempo. Cobrava 35 centavos. Ganhava gorjetas. Me traziam sacolas com os sapatos da família toda. Ele me convencendo a engraxar no centro da cidade. Dinheiro de verdade. Ajudar nas despesas. Um dia, me levou na rua dos floristas. Dos floristas e dos engraxates. Aqueles que trabalham em cadeiras. No lado direito, as bancas de flores, à esquerda, a fileira de cadeiras. A voz dele. Não são garotos, são pais de família. Ganham a vida. Todo trabalho é digno. Feio é não trabalhar. Joguei a caixa no ombro, meus oito anos, e fui. Ônibus da Murialdo, verde, vermelho e branco, caindo aos pedaços. Desci na Leonardo Truda, fim da linha. Um sapato sem meia me chamou. Aumentei para 50 centavos. Ganhei a primeira graxa. Na próxima esquina, na vitrine da Bier, botei pastas, tintas, escovas, flanela, tudo novinho. O homem de terno saiu da loja. Aqui não pode. Guardei as coisas. Fui procurar outro lugar. Chalé da praça Quinze. Muita gente nas mesas, bons sapatos. Féria promissora. Mas não, ali também não podia. Voltei ao ponto de ônibus, sem saber o que fazer. O homem da banca de fruta me chamou. Bonita caixa, tá começando? Tô, não sei aonde ir, todo lugar não pode. Ele apontou a paineira. Siqueira Campos. Sombra na frente do Bromberg. Ali tem um movimento bom, daqui eu te cuido. Bendita hora. Bom começo. Depois, peguei confiança. Sem dar por isso, passei a desenhar um território, um retângulo para a volta do dia. As trilhas do Centro, o barulho, a fumaça, o colorido, a cabeça meio zonza. Vendo tudo e trabalhando. Minto, vendo só sapato. Vai uma graxa, senhor? Rua da Praia até a praça da Alfândega. Os homens liam o jornal, que depois de lido deixavam no banco. Para o próximo. Freguesia boa. Nem que fosse só um brilho. 15 centavos. E o samba. O samba que era a alma do negócio. O ritmo da flanela estalando no sapato. O freguês rindo, gostando. Pela Mauá, o cais do porto, antes do muro. Que o povo apelidou de muro da vergonha. Mas foi antes, quando a vista era livre. Livre circulação dos pedestres. Na beira do cais, vertigem da água suja balançando com os barcos. Marinheiros eram clientes certos. Coturnos e sapatos alumiando. Sanduíche a preço de 3 graxas. Embarcando no ônibus pela porta da frente, passagem economizada, 1 graxa. Continuando pela Mauá, o Mercado Público não era bonito como hoje. Era cinza. Sucessão de portinholas de boteco. As putas encostadas nas paredes encardidas. Regininha Boca de Bagre dando bolsaço nos bêbados. O movimento do povo do centro. Zeladores dos banheiros, lavadores de carro, cafetões, descuidistas, gente de bom coração, tarados, canalhas, apontadores do jogo do bicho. Transeuntes quaisquer. Um café, um trago da que matou o guarda. Um brilho aí, patrão. No meio do dia, no cachorro-quente de linguiça, morriam 5 graxas. Mas era o almoço. Continuando pela Voluntários, ou pela Júlio, para a rodoviária nova, já era de tarde, a outra ponta do retângulo. Ali, reinava Zé Grande, com seus 2 metros e 150 quilos, caçando ladrão para entregar aos brigadianos. Lambari, príncipe dos batedores de carteira, tomando o dinheiro dos colonos e sumindo na multidão. Bons fregueses, os colonos. Botas valiam por 3 sapatos. Baleiro que morreu afogado na Praia de Belas. Já era grande. Tinha 11 anos. Olho azul. Pele cor de rosa. Mundo pequeno. Era filho de um irmão da igreja. Nunca fui na Praia de Belas. Não saía do meu quadrado. De noite, sonhava com sapato amarelo, laranja, vermelho, de duas cores, uma piscina de azulejos brancos no meio do mato, veias azuis formando um desenho na pele rosa do menino afogado, não quero engraxar na Praia de Belas, pai, quando eu vou para o colégio? Para quê, só para aprender o que não presta?!


Paulo Roberto Alves da Silva – É advogado, nascido em Porto Alegre em 1963, e aqui viveu até 1976, quando se mudou para Pelotas. Hoje vive e trabalha em Brasília.

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