Crônica

Caderno de viagens: Além do horizonte

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Caderno de viagens: Além do horizonte Foto: Arquivo pessoal

Em Lisboa se veem poucos mendigos, pedintes, moradores de rua, o que dá um certo alívio ao olhar e ao coração. Mas sabemos da miséria que assola o mundo e sua simples lembrança já cala fundo e dói na alma.

No mês de julho passado, no Rio de Janeiro, andava eu, com meu irmão Gastão, ao sair de um estúdio de ensaios no Humaitá, com o celular na mão. Ele me chamou a atenção, de que eu não estava em Portugal, que poderia passar um moleque de bicicleta e levar o aparelho num zaz.

Na sequência, segui sozinho até um cinema na enseada de Botafogo, onde eu participaria, com outros dois compositores, de uma mesa sobre a poesia das canções. 

No meu percurso, de pouco mais de um quilômetro, vi muitas pessoas jogadas nas calçadas, dormindo sobre jornais ou farrapos, ou andando com o olhar perdido, as fisionomias destruídas pela fome, pelas intempéries, pelas noites não dormidas e humilhações. 

Embora menos industrializado, com PIB e Índice de Desenvolvimento Humano inferiores ao da Áustria, Alemanha, França e Holanda, países que também visito com frequência, Portugal me passa uma sensação maior de segurança. Esse foi um dos motivos que me inclinaram a vir para cá com a família.

Em Paris, os assaltos, e principalmente os furtos são bem comuns. Em 2022, dentro do trem que faz a linha entre a Gare do Norte e o Aeroporto Charles de Gaulle, um jovem chegou a furtar minha carteira, com documentos, cartões e dinheiro. O comboio ainda estava parado na estação. Eu percebi, desci do vagão, fui atrás do meliante e avistei um volume no bolso traseiro das suas calças.

Em resumo, assaltei o assaltante, recuperando meus pertences.

Naquele dia, eu voltava de Dunkerque, onde havia feito meu último concerto da turnê europeia de 2022. E havia experimentado o alto índice de desenvolvimento daquela cidade do norte da França, que fora sitiada pelos alemães e libertada pelos americanos durante a segunda guerra, e que possui um transporte público totalmente gratuito, com ônibus movidos a hidrogênio, a fonte de energia mais limpa e abundante do planeta.

Então lembrei que, em 2011, assisti em Curitiba a uma palestra do grande físico Fritjof Capra, em que o tema principal era a adoção da produção de uma energia limpa, cuja matéria prima seria o hidrogênio. Capra advertiu que há, por parte das grandes corporações de petróleo, uma pressão enorme para que não haja adesão a fontes de energia que não sejam decorrentes da combustão de produtos carbonados.

Pouquíssimas pessoas, até mesmo entre as mais ilustradas, sequer ouviram falar da possibilidade de gerir as necessidades energéticas do planeta utilizando o hidrogênio como matéria prima. 

Esse é um dos temas mais importantes da atualidade, assim como a fome e a segurança, pois tratam da realidade, do dia a dia de cada indivíduo, e estão imbricados uns com os outros. 

Quando falo de energia, penso em sustentabilidade, economia, saúde, bem-estar e consciência dos limites do planeta, o que também implica em aproveitamento dos espaços e produção de alimentos.

Quando falo em fome, lembro dos milhões de brasileiros que não sabem o que irão comer no dia seguinte, e nas crianças africanas que morrem de inanição, enquanto grandes extensões de terra são ocupadas por um agronegócio que não coloca comida na mesa, proporcionalmente gera poucos empregos e estabelece paisagens conhecidas como desertos verdes, que desestabilizam ecossistemas e retiram as proteções naturais contra enchentes e enxurradas.

E, quando falo de segurança, penso na civilização, com toda sua complexidade, nas migrações dos campos para as grandes cidades, nos cinturões de pobreza, e meu foco dirige-se principalmente aos mais vulneráveis, às ditas minorias, em especial, aos pretos e pardos pobres das periferias e às mulheres trans que são as pessoas que mais sofrem com a violência urbana, principalmente no Brasil.

Quanto à minha própria segurança, nas grandes cidades dos países europeus que mencionei acima, não chego a me sentir ameaçado, mas rola um mal-estar ao ver pessoas desalentadas, imigrantes sem teto e adictos de drogas pesadas vagando sem rumo, ou, muitas vezes, imóveis, em transe opiáceo.

Por estar mais afastado e separado do restante Europa pela Espanha, na borda do Atlântico, e muito iluminado, Portugal, além do difícil acesso, não parece um bom endereço para quem vem do leste, e, igualmente, para quem pretende levar uma vida junkie. 

Aliás, dizem que a costa portuguesa é o lugar onde o sol escolheu para morar.

Hoje, no meio da tarde, cheguei da cidade de Braga, no Norte do país, e fui direto para a praia encontrar a família. Fazia 31ºC, a água estava gelada, mas nos divertimos muito pegando onda. Depois, minhas filhas, Luísa (10) e Antonella (6), aninharam-se em meu colo para matar as saudades e espantar o frio.

No retorno para casa, anoitecia, uma luz alaranjada delineava o perfil de Cascais, com sua bela marina. O mar azul cobalto com a brancura da espuma na rebentação era um presente para os olhos. O vento terral provocava ondas harmônicas, arredondadas, e, mesmo anoitecendo, os surfistas ganharam as águas. 

A sensação que tive foi de sossego, de paz. E uma alegria silenciosa coroava o final do dia.


Antonio Villeroy é um gabrielense na Lusitânia.

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