Crônica

Caderno de viagens: Reciclagens

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Caderno de viagens: Reciclagens Foto: Arquivo pessoal

Estamos sempre a lidar com questões que já deveriam estar superadas. O cuidado com o meio ambiente, a produção e consumo de alimentos sadios, a reciclagem do lixo, a tolerância nas relações humanas, o respeito às diferenças, sejam elas de raça, gênero e orientação sexual e uma visão de mundo que seja mais solidária e agregadora, são algumas delas.

O motor do mecanismo que gera todos esses problemas é um modo de economia que privilegia poucos e explora a muitos, roubando-lhes as possibilidades de desenvolvimento, e que institui regras que os poderosos não cumprem, mas procuram impor com seus discursos, como se fossem baluartes da honestidade, da moral e dos bons costumes.

No começo dos anos 1980, quando estudava Agronomia na UFRGS, li o livro Limites do Crescimento, onde quatro autores contratados pelo Clube de Roma, através do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, analisavam a interação entre os sistemas do planeta Terra com os sistemas humanos, examinando cinco variáveis que se influenciam mutuamente: população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e esgotamento de recursos naturais não renováveis.

O livro foi escrito em 1972, e os pesquisadores valeram-se de um sistema computacional (World3) para simular o comportamento de cada variável, chegando à conclusão de que elas se retroalimentavam, e todas seguiam um padrão exponencial de crescimento cuja consequência seria um colapso econômico e social de dimensões planetárias no século XXI.

Sem querer parecer catastrófico, sinto que já estamos a presenciar alguns sintomas de uma crise global que, talvez, aponte para o declínio da civilização como a conhecemos.

A questão climática está no centro dessa discussão, e é inegável que nosso modo de produção, consumo, circulação e produção de lixo afetam diretamente o comportamento do clima.

Um dos erros mais comuns sobre a separação de dejetos é a confusão entre lixo comum e  lixo orgânico, aquele que pode ser utilizado como biofertilizante. No lixo comum há material orgânico, mas geralmente também há papel higiênico, absorventes íntimos, preservativos, bitucas de cigarro, esponjas de limpeza, restos de alimentos cozidos, que podem conter proteína animal, excesso de gordura ou um nível de acidez que seja prejudicial para a produção de adubo.

E, quando a compostagem é feita em minhocário, os rigores são maiores, pois também precisam-se evitar cascas de cebola, alho e frutas cítricas, cuja acidez pode matar as minhocas.

Em nossa casa em Porto Alegre, tínhamos uma horta orgânica que foi ampliada durante a pandemia, com o cultivo de diversas frutas e hortaliças, que regávamos com água da chuva armazenada em uma cisterna e onde utilizávamos o húmus produzido por nossas minhocas.

As hortas urbanas, urban farms, são uma possibilidade de suprir, pelo menos, uma pequena parcela das necessidades alimentares de uma família, e ajudam a aguçar a consciência sobre o que consumimos e descartamos, o que faz melhorar o controle e o reaproveitamento do lixo produzido.

Esse tipo de prática associada a uma mobilidade menos poluidora já nos ajudaria a minimizar os efeitos destrutivos decorrentes do crescimento desenfreado das grandes metrópoles.

Quando estive em Viena pela primeira vez, em 1994, fiquei encantado com as ciclovias que percorriam quase toda a cidade e a divisão do lixo em cinco categorias, metal, plástico, papel, vidro e lixo comum, o que demonstrava um avanço em relação às outras cidades europeias por onde eu havia passado e uma diferença gigantesca em relação ao Brasil, onde cidades como Porto Alegre e Curitiba mal começavam a dar início à coleta de dejetos recicláveis em alguns bairros, mas sem a distinção entre os tipos de materiais.

Em Porto Alegre, foi na gestão do prefeito Olívio Dutra que se implantou a coleta seletiva de lixo. Meu professor da cadeira de Máquinas e Motores na faculdade, Darci Fagundes, e meu colega Pedro Escosteguy foram dois dos protagonistas dessa implantação. Mas, daquela época até os dias de hoje, a coleta pouco evoluiu, nos domicílios permanecem apenas a distinção em duas categorias (comum e reciclável), nas ruas há poucos repositórios seletivos e a consciência da população ainda anda a engatinhar.

Aqui em Portugal, nos arredores da minha casa, há diversas estações de lixo seletivo, com as categorias plástico/metal, papel, vidro e lixo indiferenciado, que é o lixo comum. Os lixos orgânicos são colocados à parte em um saco verde, feito de material biodegradável, distribuído pela comuna de Cascais, e esse material é utilizado para a produção de fertilizantes e biocombustíveis.

Foto: Arquivo pessoal

Esses tonéis da segunda foto que ilustra esse texto são apenas as bocas de repositórios subterrâneos que possuem capacidades para até 12 mil litros cada um.

Ainda há alguns ecocentros para recolhimento de óleo de cozinha, pilhas e baterias, livros, CDs, DVDs, Fitas Cassete, livros, fios e materiais elétricos e eletrônicos, além de estações específicas para a coleta de roupas usadas, que tem como principal objetivo a recolha de roupas e calçados para entregar a pessoas sem abrigo, famílias carentes e instituições de caridade.

Porto Alegre precisa recuperar o protagonismo que exerceu na década de 1990, e avançar, não apenas no trato das questões climáticas, que passam pela mobilidade urbana e a coleta de lixo, mas também frear a destruição das áreas verdes, resolver os problemas básicos de estrutura e saneamento, voltar-se para os problemas da população carente e recuperar o papel que exerceu durante o período em que sediou o Fórum Social Mundial.

Em 2002, quando fazia uma turnê europeia com o coletivo Juntos, ao lado de Bebeto Alves, Gelson Oliveira e Nelson Coelho de Castro, presenciamos uma enorme manifestação popular na cidade de Munique, contra as pautas do Fórum Econômico que ocorria, por aqueles dias, em Davos. Nas ruas, os manifestantes da cidade alemã ostentavam cartazes mencionando Porto Alegre e o Fórum Social Mundial, que acontecia também naquele mesmo período.

Conversando com algumas pessoas na rua, ao dizermos que éramos brasileiros, pela primeira vez, não perguntavam se éramos do Rio, Fortaleza ou Salvador. O foco era Porto Alegre.

Isso precisa ser recuperado, e, certamente, o êxito dessa empreitada passa pela questão política, de como se organizarão as forças progressistas nas próximas eleições.

Para isso é preciso despir-se de históricas vaidades, desapegar-se das roupas usadas, reciclar as ideias e agir com mais lucidez na escolha de quem pode representar essas forças com maiores possibilidades de chegar ao Paço Municipal.


Antonio Villeroy é um brasileiro em Lusitânia.

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