Crônica

Cartografia de um outono porteño 1: Encarnações

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Cartografia de um outono porteño 1: Encarnações (Foto: arquivo pessoal)

Uma das fotos que mais gosto, daquelas em que apareço, não mostra meu rosto. São meus pés calçando um par de All Star turquesa com uma calça jeans de boca larga no chão da Plaza de Mayo, em Buenos Aires. Estão firmes sobre um dos desenhos dos pañuelos das madres que adornam o lugar. Era setembro de 2004, um dia de sol, e era a primeira vez que eu visitava a cidade. Ou não. A julgar pelo que senti no momento em que saí do subte na estação Callao pela primeira vez, já tinha estado lá outras vezes, algo que por breves momentos me fez considerar a existência de vidas passadas. Hoje me faria pensar no que chamam de multiverso. 

Era então uma estudante de graduação de História, em uma universidade federal, em anos em que usava a carteirinha dos colegas para tirar mais livros do que me era permitido da biblioteca, lia fotocópias em espanhol com um dicionário pesado ao cotovelo, e descobria Fito Paez. Nas festas, usava uns sapatos Mary Jane que chamava de “os da Mafalda” e, por gostar de futebol, testava uma simpatia por semana com os times dos países vizinhos. Daquela viagem, lembro de agências bancárias depredadas na Florida, monumentos pichados na frente do Congresso — resquícios da crise de 2001 — e voltei com uma quantidade exorbitante de coisas, entre elas uma reprodução de um Quinquela Martín que está atrás de mim enquanto digito. 

Quando viajei de volta, uma jovem argentina indo a Camboriú no mesmo ônibus que eu me perguntou há quantos anos eu morava em Buenos Aires. Respondi que fiquei na cidade só por quatro ou cinco dias, até hoje não lembro quantos. Na minha cabeça, talvez fosse um mês, da forma como as viagens alteram nossa percepção do tempo pela quantidade de informações novas que absorvemos.

Ano passado, voltei à cidade. Era minha quinta ou sexta vez lá, porque retornei de diferentes formas e com diferentes sentimentos e propósitos nessas quase duas décadas, outras encarnações minhas. Um taxista, ao estar me levando ao Espacio Memoria y Derechos Humanos Ex-ESMA, onde era o congresso no qual apresentaria um trabalho, me fez a mesma pergunta que aquela da menina no ônibus. Respondi, de novo, que estava ali só por uns dias. Sei que talvez passe essa impressão porque meu castelhano não é terrível, mas uma pontada no meu lado esquerdo, perto das costelas, me diz que talvez  isso seja de outras vidas; o que poderia ter sido, não sei bem como ou por quê.

A chamada Ex-ESMA, localizada na Avenida Libertador, em Núñez, está normalmente fora do circuito de pontos turísticos oferecidos aos brasileiros que visitam a cidade, numerosos nos últimos anos por conta do câmbio, que tendem a circular pelos arredores da Avenida de Mayo, Recoleta, Palermo, Puerto Madero e quiçá San Telmo. O lugar fica distante desses bairros e é um espaço mais de reflexão do que dado ao deambular contente de quem está de férias. Trata-se de um memorial no lugar onde ficava a Escuela Superior de Mecánica de la Armada, que serviu como centro clandestino de detenção durante a ditadura iniciada com o golpe militar de 24 de março de 1976. Ali, entre tantos outros, homenageados os escritores ainda desaparecidos Haroldo Conti e Rodolfo Walsh, este último tendo a ESMA como derradeiro lugar onde seu corpo – já sem vida – teria sido avistado. Sua encarnação atual – como lugar de memória – veio a cabo em 2004, durante o governo de Néstor Kirchner, assim como, em 2006, o dia 24 de março foi declarado feriado como Dia Nacional da Memória por Verdade e Justiça. 

A primeira vez que visitei o lugar foi em 2017 e saí de lá destroçada não apenas pelo passado, mas também pelo presente, em especial o brasileiro, onde o 31 de março é esse dia estranho em que tememos que haja quem saia a festejar. Assistindo por meses pessoas se aglomerarem em um parque de Porto Alegre pedindo o retorno da ditadura militar, não conseguia deixar de pensar que o que foi feito naquele espaço, incluindo o sequestro de bebês ali paridos e sua adoção por pessoas ligadas à repressão como forma de aniquilar a memória de seus pais, era justificável para muita gente, inclusive algumas que conhecia. Saí de lá e caminhei vagamente na direção de onde tinha vindo até encontrar uma praça, onde fiquei assistindo crianças brincarem até meus sentimentos se reordenarem.

Nos últimos meses, as pessoas do meu entorno que assistiram o filme Argentina, 1985 comunicavam o sentimento agridoce do que um historiador alemão chamou de “futuro passado”. É como se saíssemos do subte na estação Callao, víssemos os signos nas ruas que sinalizam ni olvido ni perdón e nos deparássemos com nós mesmos em outra vida possível depois dessa experiência compartilhada de autoritarismo e repressão com a qual no Brasil lidamos de maneira diametralmente oposta.

O negacionismo com o qual muitos se surpreenderam durante a pandemia tem no Brasil, em parte, suas origens no questionamento do conhecimento acadêmico produzido nas universidades e nas salas de aula a respeito desse período, já que haveria uma recusa por parte dos historiadores em se ouvir “os dois lados” e não apenas os das vítimas do regime. Junto com a escravidão, talvez essa tenha sido a principal ponta de lança dos revisionismos de direita que têm sido amplamente divulgados por aí, inclusive na grande imprensa e nas grandes livrarias, na forma de guias “politicamente incorretos” e abordagens paralelas da história do Brasil. Não é de graça, já que inclusive ambos os traumas estão intrinsecamente ligados. 

Sou professora de teoria da história, algo que parece complicado, mas que na verdade encontra-se tão implicado em nossa visão de mundo a ponto de afetar nosso vocabulário, principalmente o político, quando esperamos que a história nos mostre para onde ir, seu “lado certo”, e então nos salve do atraso. O que faço em sala de aula — ou o que tento fazer — é cutucar esses conceitos como quando repetimos a mesma palavra várias vezes até ela apenas parecer um amontoado de sons. Fazer esse exercício significa repensar o que consideramos “passado”, “presente” e “futuro”, principalmente a ideia de que o passado está no passado. Nossas irrupções de passado no presente, na forma de golpes ou ameaças de golpes, na violência cotidiana contra minorias e no aparato policial que ainda faz o que fazia com os jovens guerrilheiros de classe média nas periferias, é uma mostra de que isso de “estar no passado” ou ser “página virada” não é tão simples.

A questão é que o futuro que construímos — ou que tentamos construir — a partir de 1989 no Brasil — e nos outros países do Conesul que passaram por experiências semelhantes no último século — esteve informado por outros conceitos que foram habilmente naturalizados tanto quanto a ideia de história, essa senhora hirsuta que muita gente acha que um dia vai julgar alguém. Isso leva muita a gente a enxergar um período como os anos 1960 e 70 como balizado pelos mesmos horizontes que os nossos — uma projeção do futuro sobre o passado —, que torna difícil qualquer apreensão das questões que estavam em jogo em 1964, 1968 e 1985.

A ideia de democracia — aqui, na Argentina, em qualquer lugar que seja — também passou por várias encarnações e foi mobilizada inclusive nos arroubos autoritários que nos levaram até aqui. Como toda ideia, a democracia não tem um valor em si mesmo. Uma das primeiras bordoadas que tomei em sala de aula foi ouvir de alunos e alunas advindos das periferias de diferentes partes do Brasil, muitos envolvidos nas ocupações de escolas públicas em 2016, que não se sentiam representados por essa palavra, não nos termos em que ela ainda estava vigente. Me atiraram na cara o que eu já sabia, mas parecia ter esquecido como um vidro de mostarda no fundo da geladeira: que a democracia defendida por mim e pelos meus pares, a que meus pais haviam me ensinado a valorizar me levando pela mão para votar naquelas primeiras eleições depois de décadas, estava ancorada em privilégios de classe, e que — isolada nesse ato de depositar uma cédula em uma urna — pouco transcendia para outros sujeitos dependentes desse gesto. 

Esse questionamento e desconfiança das instituições não se traduz automaticamente no apoio ao que na imprensa chamam de “aventuras autoritárias”. Pelo contrário, significa pensar novas formas de agir e de ser politicamente. E aí entra o cerne das motivações pelas quais as elites abraçaram o projeto dos militares há quase 60 anos e que normalizaram os discursos relativizantes a respeito daquele período, colocando aqueles que se opuseram ao regime ou mesmo as medidas que o precipitaram como temerariamente próximas dos perigos que representavam a União Soviética e Cuba.  

Mesmo na Argentina, que parece ter feito o “dever de casa” no que diz respeito à presença dos militares na política, o governo que precedeu o atual teve um mandatário com posicionamentos igualmente condescendentes em relação ao período que antecedeu o retorno à democracia, que esse ano completa 40 anos. Há uns dias, Macri inclusive postou em suas redes sociais os pêsames pela morte de um empresário notoriamente associado a um episódio chamado Noche del apagón, em que 400 pessoas, entre estudantes, sindicalistas e militantes, foram sequestradas na província de Jujuy, no norte do país. Nem todo passado passa, no final das contas, e já que a história não julga ninguém sozinha, o banco dos réus muitas vezes fica vazio à sua espera. 

A democracia atualmente nos parece frágil porque deveríamos estar pensando em como a praticamos e adjetivamos, ao invés de tomá-la como um dado da natureza. Falo principalmente daquele devir confortável no qual muita gente acreditou em diversos momentos da história brasileira, fosse no retorno das eleições presidenciais em 89, no fim da hiperinflação ou mesmo em 2002, aquele “agora vai”.

Justamente nesse dia 1º de abril, em que lembramos os nossos que sumiram naqueles vinte anos que muita gente gostaria que retornassem, volto a pisar com meus tênis de cano baixo em Buenos Aires. Dessa vez, entre outras coisas, estarei pensando nessas vidas outras que poderiam ser e que não são. Estarei neste espaço escrevendo sobre como é sobrepor os passados e o presente desse canto do hemisfério sul atravessados por experiências semelhantes, tanta gente silenciada, tanta gente se fazendo ouvir e muitos fantasmas a nos rondar.


Renata Dal Sasso é Professora de História da Unipampa, campus Jaguarão, vai passar dois meses como pesquisadora visitante na Universidad de Buenos Aires. Além disso produz uma newsletter pessoal sob o nome “Correio do sul do sul”.

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