Crônica

Cartografia de um outono porteño 8: Nômades

Change Size Text
Cartografia de um outono porteño 8: Nômades

Durante um tempo na adolescência, quando comecei a escrever uns poemas muito ruins num bloco de folhas amarelas que depois escondia num fichário, me ocorriam palavras que tinham vindo da minha avó materna. E porque já tinha me dado conta de que ela preenchia as frases com termos inventados por falta de vocabulário em português ou então traduzidos literalmente do italiano, mais de uma vez recorri ao dicionário para ver se existiam formalmente ou se eram “coisas da Nonna”. 

Aparentemente “estrafunhada” não é um termo real que designe uma roupa amassada, apesar de ser perfeito para isso. Creio que aqueles que somos brasileiros filhos ou netos de imigrantes todos temos essas clivagens na língua, o que, no meu caso, fez com que eu me interessasse por idiomas estrangeiros, pela linguagem e suas estranhices. 

Semana passada, um colega aqui disse que adquiri um “cantadito porteño” no meu espanhol e, no palavreado jovem, “perdeu tudo” quando soltei espontaneamente um “ese chabón” para me referir a outra pessoa. Falo muito por imitação e o resto faço como minha avó: vou inventando ou tentando inventar. Porém, como todos sabemos, ainda tem muito do espanhol que é similar ou idêntico ao português, e aí residem todas as trampas, porque os sentidos das palavras são o que muda, mesmo quando seu significado original é o mesmo. São essas nuances cotidianas e muito sutis da língua que faz com que “boluda” tenha tantas ou mais acepções do que um “bah”. Aliás, segundo fui informada, a única coisa que me impede de estar completamente porteñizada é dizer “boludo” como se fosse apenas mais um ímpeto fisiológico.

Como minha avó que misturava tudo e ampliava nosso vocabulário, e como contrapartida por serem tão hospitaleiros, forneço aos locais pequenas pérolas do português brasileiro, dizendo coisas como “tenés de hacer una gambiarra” propositalmente, como método de espalhar o verbo, por assim dizer.

“É muito país para uma família só”, sempre penso quando minha prima anuncia que vai balançar as tranças por aí, tendo já trocado Porto Alegre por outros lugares mais de uma vez, agora levando consigo a menininha que é minha afilhada. “Balançar as tranças” era o termo que nossa avó usava para descrever o hábito que essa minha prima tinha de, no verão, escandir-se da casa da praia com algum grupo de amigas, depois inclusive pegando a Estrada do Mar para outros municípios e só voltando no dia seguinte. Eu, ao contrário, costumava ficar, segundo Nonna, “aboletada” em uma rede da varanda lendo, saindo apenas para eventuais voltas de bicicleta quando precisava descansar os olhos. Descrevi o estranhamento que isso causava na minha família de gente indócil na pandemia, quando justamente fomos obrigadas a “sentar o facho” e ficar horas e horas lendo no sofá ou então simplesmente olhando o teto, pensando, era um imperativo. Foi minha hora de brilhar, digamos assim. 

Eu e minha prima temos a mesma idade, fizemos o ensino médio no mesmo colégio e prestamos vestibular juntas. É curioso que, de nós, eu seja a professora quando era a mais indisciplinada, sempre pegando recuperação, apesar dos hábitos de leitura. Minha prima é um crânio. Eu sou uma nerd.   

“Aboletada” foi algo que fui buscar no dicionário achando que Nonna tinha inventado.

Viver é um pouco desconstruir tudo aquilo que diziam que te define. Quando estou muito tempo aboletada, sem fazer malas, pensar em fazê-las me dá um calafrio de antecipação. “Ficar muito tempo no mesmo lugar me dá coceira”, disse esses dias para minha prima, quando falávamos das nossas vidas profissionais, das coisas que planejo tentar semear aqui, do que ela pretende fazer nos próximos anos. E isso sinaliza muito dos nossos privilégios, sobretudo de raça, filhas de mulheres cujos pais imigrantes europeus conseguiram acumular algo de capital e aceder a serviços públicos de modo que elas pudessem ir à universidade. Minha mãe e minha tia caminharam, entre o colégio Infante Dom Henrique e a UFRGS, para que nós pudéssemos correr, não sem a consciência desse lugar que ocupamos e daquelas que ficam para trás.

As folhas amarelas nas quais eu escrevia meus poemas horríveis, afinal de contas, tampouco tinham sido compradas em Porto Alegre: eram o butim de uma expedição científica ao Hemisfério Norte que meus pais, professores como eu, empreenderam e que acompanhei, por assim dizer, quando era adolescente. Nos Estados Unidos, esses blocos de folhas pautadas se chamam legal pads, e o tamanho das folhas é de 22 por 36 centímetros, as quais não cabiam nas minhas pastas do colégio em Porto Alegre para laudas tamanho ofício. Ali eu trocava entre escrever em português quando estava machucada e em inglês quando queria esconder minhas feridas. E talvez esses deslocamentos todos, esses estranhamentos de ter crescido “fazendo soninhos” (de fare un sonetto) no quarto da televisão dos meus avós italianos, tenham marcado minhas escolhas ambulantes entre lugares e áreas de atuação, entre a história e meu interesse pela ficção.

Ou, como li a filósofa ítalo-australiana Rosi Braidotti escrever, e aqui traduzo à moda miguelão: “talvez eu só me perceba como estruturalmente desalojada entre diferentes línguas e encontre no pensamento pós-estruturalista uma representação conceitual adequada de algo que experimento intimamente como minha forma de ser”. Isso está em um livro chamado Nomadic Subjects, ou seja, sujeitos nômades, que estive lendo nos últimos dias justamente para me entender e também entender a outras subjetividades femininas que não encontram muito lugar na democracia liberal contemporânea, nas suas temporalidades e em seus lugares de enunciação de conhecimento, principalmente aquelas mulheres — cisgênero ou não — de origem diaspórica ou ameríndia.

Mesmo sendo branca e mesmo estando na Argentina, sou atravessada pelo que ser uma mulher brasileira comunica a muitos dos homens em outros países. Morar fora me ensinou que a partir do momento em que abro a boca e revelo meu sotaque, principalmente em lugares turísticos, preciso me armar para uma série de baboseiras que acompanham ter esse corpo com esse passaporte, seja no exterior ou no Brasil diante de estrangeiros. Algo que foi assunto, inclusive, de uma frase infeliz do ex-presidente, entre tantas outras. 

Saber reconhecer que no que me toca isso tudo se dá somente a partir do momento em que digo de onde sou ou revelo um sotaque é essencial para que eu não reforce ou replique as violências que mulheres brasileiras negras e indígenas sofrem. Também considerar que os nomadismos de sujeitos se dão de diferentes formas e que uma coisa é desalojar-se voluntariamente e outra ser realojada, seja física ou epistemicamente, muitas vezes sem sair do lugar. 

Semana passada li sobre uma antropóloga argentina que encontrou seu bisavô em um museu. Não literalmente, pois era tão somente a princípio uma máscara mortuária, mas daquele imigrante espanhol atropelado em 1938, o Museo de la Morgue Judicial achou por bem reter também a vértebra cervical fraturada que o matou, sem que sua família soubesse. Isso apesar de ele não ser um cadáver não-identificado, como era o expediente dessa instituição: somente usar peças daqueles corpos não reclamados, ou seja, dispor daqueles corpos que por “não pertencerem” a ninguém tampouco inspiram os cuidados fúnebres que achamos que todos merecem. Aquilo que sabemos que passou com ameríndios e com africanos, sendo colocados como objetos de exposição em museus ou zoológicos, e que aparece em romances como Correntes, de Olga Tokarczuk, e no mais recente Huaco retrato, de Gabriela Wiener.
Talvez o critério para escolher que o avô de María José Sarrabayrouse Oliveira fosse parar ali, na coleção, depois de identificado como um trabalhador imigrante, fosse seu estatuto estrangeiro. Um corpo estranho, não pertencente, apesar de europeu e branco. Porque los gringos, os imigrantes, ainda tinham outro estatuto na Argentina do início do século. E talvez os ímpetos nômades, meus e da minha prima, sejam também um reflexo de nós nos percebermos assim, como sujeitos sem lugar, mesmo inconscientemente, tentando escapar de terminar imóveis, embalsamadas, ao invés de correndo com o vento que nos fez chegar até onde estamos.


Renata Dal Sasso é Professora de História da Unipampa, campus Jaguarão, vai passar dois meses como pesquisadora visitante na Universidad de Buenos Aires. Além disso produz uma newsletter pessoal sob o nome “Correio do sul do sul”.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.