Crônica

Crônica de um desajuste, ou, o que diz o silêncio da enchente?

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Crônica de um desajuste, ou, o que diz o silêncio da enchente? Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Do ponto de vista individual e privado, sou privilegiado. Na minha casa a única coisa que encheu foi a piscina que montei no pátio pra coletar água da chuva e minimamente conseguir lavar as mãos e puxar a água do vaso quando terminasse a água na torneira. Mas confesso que quando a água invadiu o Menino Deus e a Cidade Baixa, levei medo. Já estava com medo antes, mas naquele dia de fato me assustei. Saí pra comprar sei lá o que na fruteira e vi levas de itinerantes chegando no Bom Fim. Carregavam mochilas, galões de água, sentavam nos cafés pra tentar algum wi-fi. Helicópteros voavam pelo céu, me vi no meio de uma guerra. Enviei um zap pra minha esposa: “quando eu chegar vamos alugar uma casa na praia e sair amanhã ou depois”. Na primeira negativa que recebi, respondi algo tipo: “tu não tá te dando conta!” Na segunda, ela disse que eu estava histérico. E eu estava mesmo, recobrei a razão e parei.

Tive vários impulsos de sair a fazer turismo de catástrofe. Me segurei pra não atrapalhar os socorristas, as autoridades policiais e todos aqueles que estavam na chamada “linha de frente”. O impulso então migrou para ir ajudar nos resgates, mas meu nervo ciático inflamado pela protusão discal me lembrou que mais ajuda quem não atrapalha. Então, saí para ajudar como podia. Fui dobrar roupa num abrigo, limpei entulho no outro, até que entrei definitivamente na escala de um terceiro. Agora tenho um novo trabalho. Eu, e muita gente. E muitos estão sem trabalho. Desajustou geral aquilo que nunca foi bem ajustado. Gente fazendo um monte de coisas pra ajudar quem não está podendo fazer nada. 

Remuneração? Esquece. É desajuste geral. Houve uma vez um intelectual alemão (bastante mal dito e mal lido diga-se de passagem) que lá em meados do século XIX já alertava pra esse desajuste na relação entre postos de trabalho, emprego, desemprego, produção, distribuição da riqueza etc. Dizia ele que esse desajuste é constitutivo do capitalismo, mas fica meio que escondido. A não ser nas crises, quando o troço irrompe e nos atira o problema na cara, até que vem alguém e esconde de novo. Cá entre nós, já tá dando pra ver aqueles que estão por aí procurando alguma oportunidade pra tirar alguma vantagem pessoal com o sofrimento alheio, reforçando aquela mensagem canalha de que a crise sempre gera uma oportunidade. Escondendo, portanto, o fato de que a crise é um baita problema pra muita gente. Até nos abrigos, influencers batendo selfie com algo na mão pra doar. Isso no nível micro. O que dizer das consultorias internacionais sendo contratadas sabe-se lá por quanto tempo e quanto dinheiro, quando o que não nos falta é conhecimento? 

A água já tava baixando em alguns lugares quando minha colega Maria Ceci me chamou no zap – bem na hora em que eu perdia tempo e paciência com um amigo que me cobrava por eu não ter cobrado o Lula num artigo em que critico a Prefeitura de Porto Alegre. Afff! “Lê o primeiro parágrafo!”, respondi. Ceci me cobrava também, mas outra coisa: 

“Tens concordância e/ou crítica ao termo tragédia climática? Ele me dá urticária!”

Bah, sério? Mais uma coisa pra criticar?! Saquei na hora o que ela queria dizer (anos de trabalho juntos): a palavra climática se refere a clima e, como tal, exclui o humano, o social da tragédia. Tentei dar uma engambelada pra me concentrar no fight do zap, respondi algo do tipo: “ah não sei, o conceito ‘climático’ já inclui a ação humana”. Ela ficou firme: 

“Eu fico muito incomodada, quem está abrigado é gente, não é o clima”. 

E completou: 

“Climático esconde as pessoas e a dimensão humana concreta da tragédia; sem falar que esconde sua gênese também humana”. 

Eu segui na minha preguiça mental e respondi que sim, pra quem é desavisado sobre como se dá a relação humano/natureza, sim, esconde. E ela me lembrou sobre quem é desavisado: 

“O mundo inteiro!” 

A questão é: o que é que a palavra climático sugere quando pensamos na tragédia?

Bom, a conversa terminou com a tarefa de escrever sobre isso. Algo decente, com referencial, evidências etc. Mas eu já adiantei que com meu novo trabalho na portaria da Esefid não saberia se daria conta disso agora. Só que a pulga ficou lá, atrás da orelha. Obviamente que não consegui dar conta da tarefa do jeito que tem que ser, ao menos até agora. Tão logo terminou a conversa, botei no dicionário, esses do Google mesmo, as palavras climático e clima: climático é “relativo à clima”. Grande definição! E clima é: 

“Conjunto de condições atmosféricas que caracterizam uma região, pela influência que exercem sobre a vida na Terra; região caracterizada por determinadas condições climáticas; zona terrestre compreendida entre dois círculos paralelos; ambiente, atmosfera.” 

Alguém achou algo humano aí? 

Ok, teremos que discutir: afinal, por que se manteve essa palavra climático para se referir às mudanças provocadas pelos seres humanos no clima? Mudanças climáticas? Ou mudanças provocadas pelos seres humanos no clima? Quem lê ou ouve essa palavra, pensa em clima como algo natural e externo, ou na forma pela qual estamos nos relacionando com a natureza? Aliás, alguém lembra do aquecimento, ou da ebulição global? Onde foi parar essa expressão? Mudanças climáticas é muito mais palatável. Não estaria aí mais uma forma de esconder os desajustes de que o tal alemão alertava, desajustes esses que não acontecem só na relação entre o trabalho, emprego, produção, riqueza etc., mas também na relação entre nós, os seres humanos e a natureza (observação: com isso ele não estava querendo dizer que nós não somos parte da natureza, estava sim alertando que apesar de sermos seres naturais, somos também seres sociais, e aí tem uma diferença muito, mas muito importante). 

Até um conceito ele cunhou para esse desajuste: falha metabólica. Sim, lá no século XIX, quando recém começamos a timidamente poluir o rio Tâmisa, levar guano do Peru e do Chile para adubar grãos na Inglaterra e algodão nos Estados Unidos e deixar o ar de Manchester irrespirável, ele já sacou que havia um desajuste ecológico que também era constitutivo do capitalismo. Daí que não adianta pensar no problema só até ali adiante, sem considerar a sua totalidade. Senão vamos cair no conto de que isso pode ser resolvido abrindo um canal na Lagoa dos Patos pra escoar a água da enchente. Sério que depois de ignorar todos os que há décadas dizem que não dá pra assorear os rios, diminuir área de proteção, transformar tudo em plantação de soja etc., vamos tentar resolver o problema abrindo a Lagoa dos Patos? 

A falha metabólica é essa falha no metabolismo entre seres humanos e natureza: a forma pela qual usamos a natureza pra satisfazer nossas necessidades. Sendo que por nós deve-se entender não eu e você; tampouco nós gaúchos; não os políticos ou os empresários; não o PT, o Bolsonaro ou o Papa; mas a humanidade inteira.

Com a tarefa de escrever decentemente sobre isso, indo comprar álcool pra ajudar um pessoal que estava limpando uma casa na Garibaldi que iria servir de abrigo para cães, passando pela Cristóvão, vi várias viaturas da Brigada Militar e do Exército. As transversais que levam pro São Geraldo estavam todas com cavaletes da EPTC. Me vi na guerra de novo. 

Parei na esquina da Cristóvão com a Hoffman, de onde eu via o início da água. Justo ali, no quarto distrito, onde se quer criar um enclave urbano alienado do resto da cidade. Escutei o silêncio da enchente. 

Um morador de rua acompanhado de uma garrafa de cachaça falava alto sozinho no meio da quadra, as palavras se perdiam no silêncio, que finalmente o vencia. Tomei coragem e caminhei na direção da enchente, seria provavelmente o meu único turismo de catástrofe. Bati minha única foto da catástrofe. Quanto mais perto eu chegava da enchente, mais inóspita era a paisagem. Tive a sensação de que o tempo ali estava parado. O silêncio queria dizer alguma coisa.

Uma mulher saiu do térreo de um pequeno edifício carregando tralhas que atirou na calçada, tinha uma vassoura na mão. Ali a água já tinha baixado. Ela estava tirando o que perdeu e limpando o que ficou, pensei. Lutando pra dar alguma condição de viver na sua própria casa destruída pela natureza. Pela natureza?

Segui adiante até onde deu pra caminhar, pulando poças e barro no meio fio. Parei e contemplei. Não consegui identificar o que estava ali adiante… o Vila Flores não é na esquina? Se for, a oficina do Paulo era logo dobrando… era como se aquele lugar não fosse mais o mesmo, perdi as referências. A água mostrava o caminho para um desconhecido, talvez o desconhecido do futuro que pode estar se apresentando se continuarmos falhando na nossa relação com a natureza, escondendo mais uma vez aquilo que nos escancarou a tragédia: só nós poderemos salvar o clima, a natureza, e uns aos outros.


Rafael Kruter Flôres é portoalegrense, casado com a Marianna com quem vive há quase vinte anos no Bom Fim, e pai do Ramiro. Atualmente, atua como voluntário na portaria do abrigo da Esefid/UFRGS e, quando possível e necessário, dá uma força no abrigo de cães O Abrigo do Bom Fim. É docente e pesquisador da Escola de Administração/UFRGS e membro do grupo de pesquisas Organização e Práxis Libertadora.

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