Crônicas animais: “Dia de matar porco”
O romance de Charles Kiefer me deixou sem saída. Mas prefiro pecar por falta de originalidade a evitar copiar-lhe o título e perder a chance de dizer que uma boa história não tem fim, desperta muitas outras histórias em nós.
Uma lembrança macabra paira entre as mulheres da minha família – mãe, tias, prima -, e, quem sabe, perpasse gerações futuras em nossos códigos morfogenéticos aquele pavor. Era dia de matar porco e a matança não seria na casa dos empregados, invadiria a nossa varanda, onde a mesa era mais comprida. O animal degolado, mas ainda vivo, fora depositado pelos três homens que o carregavam sobre o móvel forrado com uma toalha de plástico oleado estampada. Das mulheres em volta da mesa, apenas minha avó e Dona Gucha, a cozinheira, pareciam ter alguma familiaridade com o que acontecia. As mais jovens, minha mãe e minha tia, olhavam para aquela cena como alguém que, recém chegada à adultez, recebe a incumbência de executar uma tarefa de adulto pela primeira vez. Nós, as crianças, ficávamos restritas à sala contígua à varanda, ou à rua, estávamos proibidas de participar ou observar o que acontecia. Mas a porta da sala havia ficado aberta – por descuido talvez, ou pedagogia -, e a proibição, como bem se sabe, atiça nossa curiosidade. Enquanto gritava o porco, não nos animamos a olhar. Mas um grito coletivo de horror saído das bocas de nossas mães nos baratinou; saímos correndo em direção à varanda, mas a porta bateu fechada antes de chegarmos. Por uma fresta espiamos minha madrinha limpando as lágrimas enquanto engolia as palavras que lhe escapavam como pios e se misturavam aos urros do animal.
[Continua...]