Crônica

Crônicas animais: Jacarés no Menino Deus, peixes na Cidade Baixa

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Crônicas animais: Jacarés no Menino Deus, peixes na Cidade Baixa Foto: Victor Warth

Quando realizava Inventário Participativo “Caminhos Guaranis”, junto ao Centro de Referência Indígena do Rio Grande do Sul, coordenado pela cacica Mbyá-guarani Kerexu Takuá, tomei conhecimento de que o atual arroio Dilúvio foi outrora conhecido por rio Jacarei ou Jacarey – em tradução livre do guarani para o português: “jacarezinho” ou “rio dos jacarés”.

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Em uma ampliação da Planta de Porto Alegre, de 1945, é possível visualizar o traçado do rio Jacarey, percorrendo o bairro Cidade Baixa, na região onde hoje se territorializa o Centro de Referência Indígena, localizado na Travessa Comendador Batista, nº 26. Posteriormente, o rio foi canalizado e retificado, passando a ser chamado de arroio Dilúvio, uma obra que começou no final da década de 1930 e levou quase vinte anos para ser concluída. Essa teria sido a solução para evitar os frequentes transbordamentos do rio e as inundações deles decorrentes.

Passamos a pensar a respeito dessas memórias ambientais ao observarmos que o artesanato indígena exposto na loja do CRIA-RS, especialmente aqueles bichinhos feitos em madeira, apresentava uma constante e espessa camada de mofo, por mais que fosse cuidadosamente limpo com frequência. Sendo a equipe de apoiadoras do Centro de Referência Indígena multiétnica e multidisciplinar, um certo dia, estávamos reunidas a cacica, eu, uma estagiária de relações internacionais e uma designer, quando surgiu o assunto do mofo e da conservação das peças de artesanato. A designer sugeriu usarmos um verniz para proteger as peças, mas de imediato percebeu que a solução era um tanto deslocada do contexto cosmológico, e mesmo técnico, em que elas eram produzidas. Começamos, então, a nos perguntar o que causaria tanto mofo. A cacica a dizer que vertia água por toda a casa, que vertia água até dos paralelepípedos da rua, de tão úmida que a rua é. Lembrei de um passeio guiado que fizemos pelos arredores do CRIA-RS – durante um curso de extensão promovido pelo Centro, em parceria com universidades gaúchas – rememorando a antiga configuração do bairro, os aterros e desvios de cursos d’água feitos em nome de uma urbanização violenta e nada promissora. Uma das arquitetas da equipe de apoiadoras nos mostrava, inclusive, os fósseis de vegetais impressos nas pedras de basalto que cobriam algumas das calçadas da vizinhança. Chamava nossa atenção para a memória nas pedras – observem, quando estiverem caminhando por aí, aquelas manchas com relevo levemente protuberante que são reveladas pelo corte das pedras de basalto utilizadas como piso: muitas são, na verdade, matéria orgânica fossilizada. 

Ao lembrarmos desse passeio, nos perguntamos se o curso do rio Jacarey não estaria ainda serpenteando por ali, na memória ambiental daquele lugar onde agora temos ruas pavimentadas, edificações e bastante sombra. Concluímos que sim, se não há muito tempo, pelo menos naquele instante – assim funciona a memória – quando o rio dos jacarés se fez presente em nossas elucubrações acerca da deterioração dos jacarezinhos, tucanos, onças, corujas de madeira, trazidos de diferentes aldeias Mbyá-Guarani para habitarem aquele casarão velho e tão vivo da Cidade Baixa. Obras das mãos de um povo que, justiça seja feita, jamais deixou de estar presente naquele lugar, com sua língua, sua cara, seus bichos e sua arte de fazer caminho. 

Solucionada criativamente a dúvida sobre a causa do mofo, aproveitamos o embalo e nos convencemos de que o que estava faltando no Centro de Referência era a presença de fogo e de fumaça, entidades que nunca se ausentam das aldeias Mbyá-Guarani. Improvisamos diferentes métodos de queimar sem incendiar a casa, mas nenhum foi suficiente para que o artesanato deixasse de mofar. É preciso muito fogo para tanta água. Assim persiste a memória…

Comecei a escrever essa crônica na primeira semana de maio, aterrorizada pelas enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul e, muito gravemente, Porto Alegre e região. Comecei a escrever, mais precisamente, quando um jacaré foi avistado nadando nas águas que inundaram no Menino Deus, bairro próximo ao arroio Dilúvio e assentado em uma região onde os aterros do Guaíba explicitam as consequências de um projeto de cidade autodestrutivo. Fiquei uns dias sem luz na minha casa, passei outros dias acompanhando mulheres Mbyá-Guarani na retomada de sua dignidade e seus corpos-território, interrompi a escrita. Nesse espaço de tempo, ouvi no rádio que foram encontrados peixes nas calçadas da Cidade Baixa, assim que o alagamento baixou. Os peixes e os jacarés, seu retorno, a retomada dos bichos, povoaram minha mente de sanidade, enquanto na mídia os políticos achincalhavam nossa inteligência. Não quis guardar só para mim essa saúde de escrever e aqui estamos.

Talvez tudo isso tenha sido dito aqui também para lembrar que o prefeito Sebastião Melo pode até estar “bem perdido”, em meio a sua vil gestão da enchente, mas o jacaré do Menino Deus não. O jacaré do Menino Deus está é bem achado, no caminho das águas onde estiveram seus antepassados, onde mora sua memória, inseparável da memória implacável do ambiente.


Marília Kosby é poeta e antropóloga

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