Crônica

Crônicas animais | Porto Alegre podre de viva

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Crônicas animais | Porto Alegre podre de viva Foto: Frans Van Heerden/Pexels

Proferindo uma das Grandes Conferências Liegeoises, a filósofa e etóloga belga Vinciane Despret contou que, entre os anos de 1994 e 2004, a população de abutres de Mumbai, na Índia, sofreu uma queda demográfica de 97%. Ou seja, 97% dos agentes responsáveis por lidar com os cadáveres de humanos e outros animais desapareceu. E não foi por falta de alimento: os corpos de bovinos não são enterrados depois de mortos, pelo mesmo motivo pelo qual estes animais não são comidos por humanos, por serem sagrados na Índia, sendo o principal destino de suas carcaças o apetite voraz das aves necrófagas; além disso, tradições funerárias como a do grupo étnico parsi deixam os cadáveres humanos ao ar livre para serem rapidamente devorados pelos abutres, evitando que sua decomposição sob o solo ou a cremação acarretem poluição – mais adiante veremos que esta preocupação ambiental não está desengajada de outras questões, de ordem cosmológica. 

O desaparecimento drástico dos abutres, à revelia da abundância de comida, acompanhou a liberação, em 1993, do uso veterinário do anti-inflamatório diclofenaco. A ampla administração desse medicamento nos rebanhos bovinos indianos fez com que os cadáveres desses animais se tornassem letais para os abutres, já que sua presença na carne consumida pelas aves causa paralisia renal. Diante do grave problema de saúde pública advindo desse desequilíbrio ecológico, o estado indiano e diversos agentes sociais se mobilizaram, promovendo ações de manutenção, reprodução e então resgate da população de abutres. Entre tais medidas, uma que se mostrou exitosa nesse sentido foi a proibição do uso de diclofenaco em animais.

Essa notícia sobre a quase extinção dos abutres na Índia foi veiculada mundialmente, e inclusive na mídia local, aqui de Porto Alegre. Optei por trazê-la a partir da Vinciane Despret porque esta autora vincula o assunto a uma noção muito interessante: a de cosmoecologia. De maneira bastante simplificada, pode-se dizer que quando juntamos em uma única ideia cosmologia e ecologia, estamos evidenciando o elo inextricável entre nossos modos de organizar, classificar, simbolizar, sacralizar o mundo tal como o concebemos e a condição múltipla (ao contrário de una) de tudo que compõe esse mundo. Para os parsi, para a maioria dos povos ameríndios e o povo de terreiro, por exemplo, não há nenhuma novidade nesse engajamento entre cosmologia e ecologia. Assim como o grupo étnico indiano não se preocupa em fazer desaparecer cadáveres antes que comecem a apodrecer, o mesmo se dá nos ritos fúnebres yanomami, ou com as oferendas das religiões afro-brasileiras: a podridão é um dos estados elementares dos ciclos da vida: para olhá-la, cheirá-la, percebê-la, é preciso estar viva, vivo.

Voltando aos urubus. Estes, assim como outras aves necrófagas, são fundamentais para que o equilíbrio desses ciclos (que é cosmológico, ecológico, biológico…) não se converta em desastres ambientais e sanitários. Mesmo nas cidades, pensadas de acordo com uma lógica moderna, que separa em polos opostos natureza e cultura, humanidade e animalidade, por mais que não queiramos ver ou assumir, a vida segue seu percurso, seus ciclos. E mesmo nessas cidades gentrificadas, espoliadoras, ainda há povos vivendo conforme esse tipo de crença, pasmem! 

Ironias à parte, convivo com as orlas do lago Guaíba da porção mais ao sul de Porto Alegre, há cerca de uma década, e é bem comum que, ao transitar por elas, a gente se depare com populosos bandos de urubus bem gordos, ali de boas. É corriqueiro também ouvir insultos e indignações quanto à presença desses animais estigmatizados “numa vista tão bonita”. Para sobreviver às consequências da gentrificação, das espoliações territoriais, do racismo ambiental e tantas outras violências que o famigerado desenvolvimento urbano traz consigo, manter modos de vida que reforcem aquele elo inextricável da nossa espécie com as demais formas de existência do cosmo (as plantas, os minerais, os bichos, os astros…) não é exatamente uma questão de escolha. É resistência. A perpetuação do racismo também está implicada cosmoecologicamente, quando atravessa, em um só golpe, religiões de matriz africana, aves necrófagas e trabalhadores do serviço municipal de limpeza pública.

Na semana passada, encontrei as escritoras Luciany Aparecida e Natália Borges Polesso, no Bará do Mercado Público de Porto Alegre. A ideia era tomarmos um sorvete e trocarmos umas ideias, por ali, de boas. E tudo ocorreu como esperávamos. Entre o cheiro de café recém passado e o de peixe fresco das bancas do mercado, entre as pústulas de Obaluaiê e sua dança encantadora, tauromaquia e divagações acerca do sublime, pousaram em nosso assunto urubus vindos de dentro de um sonho. A tarde passou assim, num interminável “que horror-que lindo!”.


Marília Kosby é poeta e antropóloga.

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