Crônica

Cronista coisa nenhuma

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Cronista coisa nenhuma

Há quase três meses não enviava uma crônica para a Parêntese. Uma crônica animal, diga-se de passagem. Desde que meu cachorro Guará sumiu, no último 12 de setembro, interditei-me o deleite de brincar com os bichos e as letras, no mesmo pátio, no mesmo meio da rua, no mesmo doc. Cronista coisa nenhuma, dizia a mim mesma, enquanto enterrava um pouco mais a faca de serrinha da culpa em minha testa. Havia pedreiros em casa, abrindo e fechando o portão da frente a todo momento, Guará aproveitou uma fresta e me seguiu, quando fui fazer caminhada. Era o que indicava uma das primeiras referências que tivemos, de vizinhos que o haviam visto perto de onde eu me exercitava.

Sim, caro leitor entediado, cara e pestanejante leitora, aborrecide care leitore: o Guará voltou! Como mágica. E como mágica me encontro aqui, catando as teclas, lutando contra o cacoete que me deixaram nos dedos as centenas de cigarros enroladinhos de tabaco sem filtro, que acendi um no outro, enquanto me penitenciava. Enquanto me penitenciava, lia na fumaça dos suspiros: minha vó parou de fumar os mata-ratos dela aos 82 anos, agora começo eu, aos 38. As parentas faladeiras diriam: que pedigree! 

Contatei grupos de protetoras. Criei uma conta no facebook e aderi a todos os grupos de animais perdidos e achados da região de Porto Alegre. Paguei uma daquelas empresas de marketing digital que ajudam a fazer as buscas dos animais perdidos. Colamos cartazes pelo nosso bairro e por outros bairros. Nossas amigas e amigos foram incansáveis, fazendo ronda de bicicleta e de moto, nos lugares onde as pessoas diziam ter visto um cão parecido com o nosso. Recebemos muitas pistas, dicas e orientações de como procurar o Guará. Percorremos a avenida Aparício Borges de ponta a ponta.  Enveredamos pelo Glória, por Teresópolis. Ouvíamos latidos como os dele à noite, na mata que fica nos fundos do terreno onde moramos, sonhávamos. 

Para não dizer que foi tudo em vão, um dos conselhos que recebi (e segui) de um desconhecido, via mensagem direta no facebook, foi de fazer uma promessa para São Roque. Nunca tive muita familiaridade com o santo protetor dos cães, dos empesteados e dos cirurgiões – todos eles, pasmem! Mas lembrei que na Catedral de Uruguaiana, cidade onde leciono, havia uma imagem de São Roque. Lá fui eu, no meio de um ensaio noturno da juventude carismática (acho, efusivos eram), negociar com o santo, acender umas velas, rogar pelo meu cusco. Agradeço à companhia da colega, que tendo sido convidada para tomar uma cerveja, acabou indo à igreja. Dizem que não presta ir a determinados lugares à noite. 

Já estávamos desesperançadas de que Guará reapareceria – ele é muito lindo, muito querido, muito dócil, claro que roubaram ele! – quando uma faísca peluda e malcheirosa apareceu no fundo da garagem de minha sogra, lá perto de Santa Maria da Boca do Monte. Uma cusquinha branca, tapada de pulgas e carrapatos e mais outros parasitas, os quais conseguimos mandar embora antes de 1º de janeiro de 2023. Tinha uma fome ancestral. E uma dermatite atópica, causada pela infestação, que a deixava com aspecto terminal. Curou tudo, vive conosco agora, a Maní. 

Era um sinal de São Roque, só podia! Cachorra e empesteada. E se curou! Era o santo nos enviando uma provação, só podia! Credo em cruz! Por via das dúvidas, tenho algumas promessas por pagar: um mês depois, perto do mesmo lugar onde o haviam visto pela última vez, na esquina de nossa casa, encontramos o Guará. Passeávamos com Quino e Maní, quando ele latiu de dentro de um pátio, no meio de outros cachorros. Quino latiu de volta e minha companheira reconheceu o ovelheiro velho lá de casa. Não vou contar como ele foi resgatado, desculpem. Só digo que, quando me faltaram forças para carregar no colo seus vinte e tantos quilos e correr ao mesmo tempo, soltei o bicho e ele chegou em casa antes de mim. Ficou nos esperando no portão. Voltamos.


Marília Kosby – Antropóloga e poeta. Autora de Mugido (2017) e Alma-caroço: nos rastros de cabras quilombolas que alimentam comunidades de terreiros no extremo sul do Brasil (2021).

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