Crônica

De perto toda memória é inventada

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De perto toda memória é inventada Rubem (Foto: Valentina Bressan)

“Quanto mais velho fico, mais lembro de coisas que não aconteceram”. A frase é de Mark Twain, mas é Rubem que me conta. É uma escolha de palavras curiosa para quem parece se lembrar de tanto. Rubem lembra de cor de nomes de ruas que hoje são casa para prédios diferentes daqueles que povoam suas memórias de infância; lembra do endereço do primeiro emprego — Rua da Praia, 120, Edifício do Relógio, 5º andar; lembra das coisas bonitas que lhe marcaram, mas principalmente dos acidentes, das feiuras, dos tropeços que seus olhos assistiram em uma Porto Alegre que já não existe mais.

Sua primeira paixão na cidade foi o Mercado Público. Ainda pequeno, acompanhava os pais de criação — os avós — em passeios ao centro. Enquanto eles iam às compras, Rubem podia zanzar pelos corredores e observar “toda a fauna” da cidade reunida naquele único lugar: o cheiro, o clima, as pessoas. Quando grande, chorou ao ver as imagens do acidente, o Mercado incendiado. “Senti que estava perdendo parte das minhas memórias”. É como que para recuperar o que viu e o que nem chegou a ver que Rubem desenha. Gosta especialmente das gravuras em que retrata a paisagem da Igreja do Rosário, que nunca conheceu. Para dar base aos traços de seus desenhos, busca fotografias antigas dessa cidade que não viu de fato. Com canetas bico de pena, desenha os cenários de uma Porto Alegre dos séculos 18, 19, 20, cheia de carroças, cais, prédios e casas com coberturas detalhadas, riscadas telha a telha.

Rubem diz que seu interesse é puramente artístico, que, ao olhar para as cenas, não reflete sobre questões sociais ou busca razões de ser para o que se apresenta nas imagens. Mas diz gostar mesmo de desenhar horizontes em movimento, onde aparecem os habitantes daquela cidade antiga carregando e descarregando os barcos, passeando, subindo e descendo das carroças e dos carros. “Sinto como se tivesse vivido aquela época. É bobagem minha, mas sinto como se tivesse passado, presenciado aquilo ali”.

O mesmo nível de detalhe que coloca nas gravuras das cenas que nunca viu, guarda nas memórias que marcaram sua vida crescendo na cidade. Rubem parece gostar de falar de acidentes. Ao final de cada história que conta, adiciona uma anedota. “Isso não tem a ver com a pauta, mas foi muito interessante”, diz ele. A ideia de desenhar uma Porto Alegre antiga com suas canetas bico de pena e tinta nanquim surgiu por conta de seu inacabável fascínio pela cidade. Não é que a ache bonita, exatamente. “Eu sei que o Centro é feio”, admite. Mas as imagens do fascinante e do horrível povoam suas memórias e o inspiram a buscar traduzir as ruas de antigamente em suas folhas de papel.

Quando passeava com a mãe em torno do Mercado na infância, a família costumava usar suas melhores roupas. O Rubem pequeno usava uma “fatiota com uma camisa e suspensórios”. Mas mais importante do que ser visto, no entanto, era observar. Lembra até hoje de uma cena de quando era criança: passava pelo edifício Sulacap, na Borges de Medeiros, quando viu uma garota escorregar, cair e lesionar a perna. “Foi uma coisa horrível”.

Já crescido, presenciou outro acidente: de repente, viu uma cabeça rolar pela calçada ao lado de seus pés, em um dia qualquer frente à praça Montevideo. Uma moça tinha caído de um prédio e seu corpo esbarrou na marquise. “Foi decapitada”, ilustra ele com um gesto. Rubem lembra os endereços em que viu essas cenas terríveis, que ao mesmo tempo se aproximam, pelo nível de detalhe, mas muito se diferem dos bonitos desenhos aos quais se dedica, por vezes, durante meses. Entre o feio e o esquisito, o artista é ainda conduzido pela perspectiva de fascínio ainda juvenil nas suas obras. “Eu era todo olhos”, resume.

Do grande ídolo na pintura, ele também lembra da morte. O pai de criação, seu avô, era sapateiro, e, quando criança, Rubem era o filho que entregava as encomendas para os clientes. Descobriu numa das andanças, na galeria Edelweiss, uma gravura de João Faria Viana, artista que ilustrava a cidade e que morreu, em 1975, dentro do ônibus Petrópolis — a linha que passava na Protásio Alves — como me conta Rubem. Não conseguiu comprar a gravura na época, mas hoje enche as paredes da casa com pinturas de sua grande inspiração. Precisou garimpar na internet um livro ilustrado por Viana, cujo título resume em boa medida o que Rubem busca traduzir: “Imagens Sentimentais da Cidade”.

O ateliê onde desenha fica bem no alto do sobrado. “Já sou um velho”, alerta ele enquanto subimos os lances de escada. A casa e a vida são marcadas pelas suas duas paixões: o desenho e a música. Ou três paixões, todas entrelaçadas. A esposa, que me cumprimenta quando entro na casa, foi um compasso de sorte: se conheceram em um concerto. Mary era soprano, Rubem era flautista. Aprendeu a tocar quando criança, sozinho, mas hoje já não toca mais. A herança musical ficou dividida entre o filho, a sala de música e as memórias, onde os sons formam composições até melhores que as da vida real. O filho é um flautista de sucesso, a sala fica cuidadosamente preenchida de LPs e CDs, e Rubem prefere a música que roda na vitrola da cabeça do que aquela que os dedos já não permitem bem tocar. “Uma vez um amigo me disse que queria ver a antiga namorada. Eu falei: será que vale a pena? Ele concordou que não, porque não é mais a mesma coisa. Preferiu ficar com a sensação que tinha antes. Se eu tocar, vai ser assim. Prefiro ficar com a sensação de como era quando tocava”.

Rubem pausa a música que toca na caixa de som quando chegamos lá no topo. De cima, ele diz se sentir em seu próprio castelo. Muitos tijolos foram colocados em sua vida pela música: do primeiro ao último emprego, da Rádio Guaíba à Rádio da Universidade, foi como um DJ da música erudita. Mais tarde trabalhou como curador, reunindo e selecionando obras de arte e música para a livraria Cultura. Agora, guarda ao lado do ateliê seus títulos de arte, ficção e culinária — gosta de cozinhar para a esposa e a filha aos domingos. É a filha, Alice, que hoje mexe nos armários para pegar as aquarelas que está aprendendo a usar.

As janelas, todas abertas, deixam circular um vento forte entre os dois cômodos, borrando a divisão entre traço e nota. Na sala em que guarda os materiais, guarda também preciosidades da memória. Rubem é um homem careca, pisa cuidadosamente por onde anda e tem mais ou menos a mesma altura que eu. Me mostra com uma postura orgulhosa, parecendo mais alto do que realmente é, a ferramenta que seu pai sapateiro usava para fazer detalhes em couro. Hoje a espécie da caneta afiada serve para destacar erros do papel branco. “Já joguei desenhos inteiros fora, mas às vezes dá para consertar”. Desde que se aposentou, em 2003, se dedica apenas à pintura.

Já pintava aquarelas quando criança, mas o que lhe fascinava eram as imagens fora de casa. Há pouco que lhe encante na Porto Alegre de hoje. O amor pela cidade, segundo ele, não nasce, mas já está dado, sempre germinando, apenas esperando solo fértil para nascer. Para ele, germinou, e é por isso que guarda com tanto cuidado as memórias dos anos 50, 60, 70… nesta cidade que compartilhamos. Deslumbrou-se quando Getúlio morreu, viu uma cidade “em convulsão”, assistindo com horror a invasão à rádio Farroupilha, quando lembra de ver atirarem os discos lá de cima, ver eles se espatifando na avenida. Fala de Getúlio — “um populista!” — mas não quer falar de política; critica o uso das canetas técnicas em desenhos mas sua visão é como de arquiteto para a cidade: “tenho uma visão essencialmente artística, só me interessa o aspecto físico”.

Dos cuidadosos traços, quer fazer um tributo, uma demonstração de carinho para essa Porto Alegre um tanto feia, tão cheia de acidentes. O resgate é talvez mais pessoal que coletivo. “Estou tentando resgatar memórias da minha infância”. Os desenhos se espalham por consultórios — deu um de presente para seu médico –, alguns vendidos depois de exposições em galerias. Rubem lembra de cada pessoa que comprou suas obras. Também insiste em me entregar uma gravura em que aparece o antigo Palácio Piratini, um pedaço do Theatro São Pedro, antes que eu saia da casa e termine a entrevista. Se lhe encanta, desenha. Quando era curador da livraria Cultura, morou em cidades diferentes pelo Brasil, e mede o gosto pelos traços: “foi um período maravilhoso, tanto que até comecei a desenhar São Paulo”.

Nessa Porto Alegre, que não sei dizer se é inventada ou não, guardam-se as memórias de Rubem. Os colegas da rádio — ele diz para que eu envie um abraço para minha professora Sandra –; os amigos de escola; o velhinho Sétimo que trabalhava na Livraria Aurora, na Floriano Peixoto, e separava livros para que Rubem lesse; o seu Baroni, do Theatro São Pedro, que conseguia ingressos mais baratos para que ele frequentasse os concertos. A moça decapitada e a que caiu, todos os acidentes. Até hoje não consegue olhar para cima daquele prédio, diz. Mas segue vendo a cidade que lhe habita dentro, por meio das fotos, por meio das memórias suas e de outros, atrás dessas imagens de fascínio que persegue desde a infância.


Valentina Bressan é jornalista em formação na UFRGS.


Este texto faz parte do trabalho de perfis e crônicas sobre a temática casa e rua para a disciplina de Jornalismo e Cultura da Fabico/ UFRGS, ministrada pela professora Gisele Reginato.

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